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09/07/2013

Dependência química e acesso: qual o melhor foco de atenção pública?

Dependência química e acesso: qual o melhor foco de atenção pública? 

Renato O. Rossi

Encerrado neste dia 25, o ciclo de debates Um Novo Olhar Sobre o Dependente Químico, que aconteceu na Assembléia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e trouxe uma proposta bastante polêmica. "Fomos muito cobrados de que o poder público não ajuda na reinserção de usuários de drogas", alega o presidente da Comissão de Enfrentamento ao Crack, o deputado estadual Vanderlei Miranda. Ainda não há resposta definitiva sobre o posicionamento de instâncias superiores estaduais frente a essa proposta, de reservar 10% das vagas de concursos públicos para dependentes químicos.

Até aí a ideia pode parecer bastante positiva e até vanguardista. Mas antes precisamos discutir certos aspectos no contexto da dependência química, como acesso, deficiência e políticas de saúde.

Primeiro acesso, sim. É compreensível que o dependente químico possa encontrar dificuldade em relação a assumir seus direitos enquanto cidadão. Em termos de trabalho, de busca de serviços de saúde, de políticas de ação social de que poderia ser beneficiado. Muitos dependentes, e talvez os que mais precisem de políticas públicas direcionadas, são aqueles que têm mais dificuldade para se ter acesso. Pessoas em situação de rua, em muitos dos casos em envolvimento com drogas de abuso, são as que mais precisariam desse direcionamento. Mas agora temos que pensar um ponto: o acesso a trabalho, por mais importante que seja, é de fato a maior prioridade para os que mais tem necessidade de atenção do Estado? E, para aqueles que não estão em situação de rua, quais suas principais necessidades?

E deficiência. Tradicional e logicamente, separação de vagas em concursos públicos e benefícios para empresas que têm este tipo de discriminação de vaga têm a ver com inserção. E quem precisa mais de inserção senão aqueles com alguma limitação do acesso ao emprego? Deficientes físicos, mentais, portadores de certas doenças que possam ser obstáculos para esse acesso são os principais beneficiados com essas políticas de separação de vagas. Mas onde neste ponto estariam os dependentes químicos? Onde estaria seu obstáculo objetivo?

E políticas de saúde. Ou falta delas. O foco da atenção governamental em relação às drogas tem sido muito voltado para a área de penalização e de segurança pública. O dependente é muitas vezes tratado como criminoso, não como alguém que necessita de uma intervenção de saúde. Podemos entender melhor isso vendo exemplos internacionais. A Holanda recentemente passou a cogitar o fechamento de alguns presídios por falta de presos para ocupar as vagas. Já os Estados Unidos possui a maior população carcerária do mundo, com a maioria estando presa devido ao envolvimento com drogas em algum nível. Historicamente, a Holanda foi um grande expoente das políticas de Redução de Danos, enquanto os EUA foram os pioneiros da "War on Drugs" (Guerra às Drogas). Coincidência? E quanto ao Brasil? Faça um exercício simples: pegue alguns jornais em qualquer dia e marque em quantas matérias é citado o tema das drogas. Feito isso, divida em quantas o foco era policiamento/segurança pública e em quantas o foco era saúde. Esse será o posicionamento do Brasil. Você vai se surpreender!

A possibilidade de aumentar o acesso dos dependentes químicos a direitos fundamentais é sempre positivo, mas precisamos pensar se o foco está bem direcionado. Dependência não é deficiência. Sob um olhar oliveinsteiniano da dependência, a droga não é em si o problema, mas sim a relação indivíduo-droga. Seus traços de personalidade e vulnerabilidades individuais aumentariam a chance do desenvolvimento dessa relação patológica com pessoas, comportamentos ou substâncias. E relações patológicas são melhor tratadas em contexto de saúde. E populações de dependentes químicos são melhor tratadas em contexto de políticas públicas de saúde. Há que se investir em uma rede ampla e articulada de saúde mental, que inclua o dependente e que dê espaço a ele. Consultórios de rua, CAPS-AD, um serviço de atenção básica que consiga recepcionar e intervir diretivamente com o dependente. Tantas coisas que se mostram como base para a reabilitação do indivíduo, para que este não se veja e que seja visto apenas como dependente, mas como pessoa. E que a deficiência do dependente, que só existe no olhar enviesado da sociedade, possa ser revertida.

Mais informações sobre este assunto, clique aqui.

*Renato Rossi:
Residente de Psiquiatria da UNIFESP
Colaborador do Causas Perdidas

05/07/2013

Programa reduz em 20% consumo de álcool entre adolescentes

Programa reduz em 20% consumo de álcool entre adolescentes

Por Karina Toledo

Agência FAPESP – Pesquisadores australianos conseguiram reduzir em 20% o consumo de álcool entre adolescentes por meio de um programa que busca conscientizar os jovens, de forma lúdica e sintonizada com a sua realidade, sobre os riscos associados ao excesso de bebida. A metodologia está sendo adaptada para as escolas brasileiras por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Segundo Ana Regina Noto, coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substâncias (Nepsis) do Departamento de Psicobiologia da Unifesp, a ideia de desenvolver a versão brasileira do School Health and Alcohol Harm Reduction Project (SHAHRP), implantado com sucesso na Austrália, surgiu após a conclusão de uma pesquisa de seu grupo, divulgada em 2010, que revelou índices alarmantes de consumo de álcool entre alunos do 8º e 9º anos do ensino fundamental.
De acordo com o levantamento, 40% dos 5.226 entrevistados de escolas privadas paulistanas haviam bebido no mês anterior ao questionário – sendo que 33% em um padrão considerado nocivo e conhecido como binge – quatro ou mais unidades de álcool para mulheres e cinco ou mais para homens em uma única ocasião.
“O que esse projeto tem de diferente é o fato de apostar na capacidade do adolescente de fazer escolhas mais seguras quando estimulado a isso. O programa incentiva o estudante a tirar suas próprias conclusões em vez de simplesmente tentar ensiná-lo a dizer ‘não’ como uma opção predefinida. Talvez por esse motivo, o SHAHRP apresenta melhores resultados quando comparado a muitos outros do gênero”, disse Noto.
Com base em evidências científicas, acrescentou Noto, o programa parte do pressuposto de que situações de uso de álcool entre adolescente ocorrem – muitas vezes com a anuência da família –, embora a venda de bebida para menores de 18 anos seja proibida por lei. “Por esse motivo, é preciso abrir espaço de conversa sobre essas situações”, disse.
“Pesquisas anteriores mostraram que as abordagens baseadas simplesmente em convencer o jovem a não beber eram falhas. Muitas vezes tinham até impacto negativo, causando aumento do consumo em vez de redução. Decidimos tentar algo diferente”, contou Nyanda McBride, pesquisadora do National Drug Research Institute, da Austrália, e uma das idealizadoras do SHAHRP.
Antes de desenvolver a metodologia, McBride entrevistou professores e especialistas em prevenção e conversou com os estudantes. O objetivo era conhecer onde, como e com quem eles costumavam ingerir álcool, bem como as situações de risco às quais estavam expostos.
“Se vocês nos disserem para não beber vamos simplesmente desligar nossos ouvidos, pois não é assim que queremos viver nossa vida, nos avisaram os jovens”, disse a pesquisadora australiana àAgência FAPESP.
McBride então desenvolveu uma estratégia de intervenção para ser aplicada nas escolas dividida em duas fases. Na primeira, voltada para estudantes de 12 a 13 anos que começam a ter contato com álcool, eram realizadas oito sessões de uma hora cada. A segunda fase, aplicada um ano depois, contava com quatro sessões de uma hora.
Além de passar informações, a missão dos professores era ajudar os jovens, por meio de jogos e atividades interativas, a desenvolver suas próprias estratégias para reduzir os riscos associados ao consumo de álcool. A metodologia foi aplicada num grupo de aproximadamente 2,5 mil estudantes. Metade fazia parte do grupo controle e foi submetida a um programa regular de prevenção de drogas.
Posteriormente, os jovens foram acompanhados por 32 meses e foram avaliados seus conhecimentos e atitudes relacionados ao álcool, a quantidade total de bebida ingerida, o padrão de consumo e os danos que eles haviam sofrido.
O consumo total de álcool no grupo que recebeu a intervenção foi 20% menor quando comparado ao controle. Além disso, o consumo no padrão binge nesse grupo foi 19,5% menor. Os jovens apresentaram um conhecimento relacionado ao álcool 10% maior e vivenciaram 33% menos danos relacionados a questões sexuais, violência, problemas com a lei, a família ou a escola.
“Continuamos medindo um ano após o término do programa e observamos que o impacto comportamental havia se mantido. A metodologia foi replicada em escolas na Irlanda do Norte com resultados muito semelhantes. Uma das chaves principais é a inclusão das experiências reais dos jovens participantes. Nosso objetivo é tornar essas experiências mais seguras”, contou McBride.
Processo de adaptação
A adaptação do SHAHRP para a realidade brasileira está sendo feita durante o doutorado de Tatiana de Castro Amato, com Bolsa da FAPESP, e sob a orientação de Noto, que também conta com um Auxílio à Pesquisa – Regular.
“Temos feito entrevistas com adolescentes desde 2012 e também com professores e coordenadores pedagógicos para conhecer a percepção que tinham sobre o consumo de álcool, os problemas associados e também para tentar definir qual seria a carga horária ideal e o professor mais indicado para realizar as atividades em sala”, contou Noto.
Uma primeira versão brasileira do programa – dividida em oito sessões de uma hora cada – foi elaborada e está sendo aplicada de forma piloto em quatro escolas particulares, sendo três na capital e uma no interior. Outras quatro escolas estão participando como grupo controle.
“Nas primeiras sessões são oferecidas informações, mas com muito convite à reflexão. Da metade do programa em diante são apresentadas situações de risco e os adolescentes têm de elaborar estratégias para lidar com os problemas”, disse Noto.
A faixa etária de 12 a 13 anos foi escolhida porque estudos epidemiológicos brasileiros indicam que é nessa idade que ocorre o primeiro contato com o álcool. “O consumo nessa faixa ainda é baixo, mas há uma tendência natural de aumento com o avanço da idade. Esperamos que o grupo que recebe a intervenção apresente menor consumo após seis e 12 meses, quando comparado ao grupo de controle”, disse Noto.
De acordo com a pesquisadora, foram inicialmente selecionadas escolas particulares porque, de acordo com as evidências científicas, quanto maior é o poder aquisitivo do jovem, maior é o consumo de álcool.
“O programa tem sido bem recebido pelos estudantes e algumas escolas já pensam em incorporá-lo ao currículo definitivamente. Também temos um convite para fazer uma adaptação para as escolas públicas de Minas Gerais e, no futuro, vamos tentar aplicar em São Paulo para jovens de outros contextos”, contou. 

Artigo completo, clique aqui.

01/07/2013

Uma história de Brasília

Uma história de Brasília

Denis Russo Burgierman



burrinho
A política brasileira é meio burra…
Nessa época de grandes manifestações contra a forma tradicional de fazer política, tem um projeto de lei que serve de parábola para entender o que está errado em Brasília. É o PL 7663, que modifica a lei de drogas no Brasil. A história desse projeto ajuda a compreender por que é tão difícil que o Congresso faça uma lei boa neste país.
O projeto, criado pelo deputado gaúcho Osmar Terra, é muito ruim. No geral, ele propõe umavolta no tempo, fazendo com que as leis de drogas do Brasil de 2013 fiquem parecidas com as dos Estados Unidos dos anos 1970, quando Richard Nixon formulou a Guerra Contra as Drogas. A receita é antiga: as penas de cadeia aumentam, a população de presos explode, a repressão endurece.
As consequências desse tipo de política são bem conhecidas. Os presídios, hiperlotados, acabam virando grandes centros de treinamento e recrutamento de bandidos. Criminosos de baixa periculosidade vão para a cadeia, tornam-se dependentes e, quando saem, são contratados pelo crime organizado, que fica cada vez mais poderoso, porque o endurecimento da repressão aumenta suas margens de lucro.
Hoje qualquer especialista isento de políticas públicas reconhece que essa fórmula não reduz o consumo de drogas e causa um enorme aumento na violência ligada às drogas – e por isso praticamente todos os países desenvolvidos do mundo, inclusive os Estados Unidos, estão andando na direção contrária, reduzindo repressão, esvaziando cadeias e focando na saúde pública para diminuir o consumo de drogas. Mas os políticos que criaram o projeto não consultaram especialistas em políticas públicas: eles nunca consultam. Raramente um projeto de lei é baseado em pesquisa sólida. No geral os textos são feitos sob medida para atender interesses.
É bem esse o caso do PL 7663. O projeto foi para frente porque muitos deputados, principalmente os da “bancada cristã”, são intimamente ligados a igrejas que têm comunidades terapêuticas para tratar dependentes. É o caso do alagoano Carimbão, relator do PL, e do famoso Feliciano. Esses políticos apoiam o projeto porque ele cria um canal de dinheiro do governo para abastecer suas igrejas, sem exigir nada em troca.
A bancada cristã é minoria no Congresso, mas uma minoria grande, de quase um quinto, e muito bem articulada, com enorme capacidade de conquistar votos país afora. Por isso, o governo faz de tudo para agradá-los – inclusive votar a favor de um projeto ruim que anda na contramão da história e aumenta a violência no país. Foi isso que aconteceu no mês passado, quando a Câmara dos Deputados votou a favor do PL, que assim foi enviado ao Senado.
Teoricamente, a vantagem de ter um sistema com duas câmaras, como o brasileiro, é que o Senado pode se aprofundar nos temas e corrigir eventuais burradas cometidas pela Câmara. Na prática não funciona assim, porque as duas casas estão dominadas pelo mesmo tipo de interesse. No caso desse projeto de lei, em vez de se aprofundar, consultar especialistas, tentar entender a fundo o assunto, o Senado instituiu um regime de urgência para aprovar logo a lei.
É que, em meio às manifestações que estão parando o país, o presidente do Senado, Renan Calheiros, que tem um telhado de vidro bem fininho, resolveu mostrar serviço. Criou um “pacote da segurança”, com várias leis destinadas a acalmar os ânimos da população, e meteu o PL 7663 no meio, sem nem se dar ao trabalho de entender direito o assunto. Se depender do Renan, a lei será votada – e aprovada – ainda este mês.
Basicamente todas as associações de psicologia, psiquiatria e direitos humanos do país estão contra o PL, assim como quase todos os principais especialistas da academia em políticas públicas, dependência, saúde, segurança. Mas do que adianta esses caras serem contra? Especialistas e entidades da sociedade civil não apitam nada – quem decide são as igrejas e os financiadores de campanha (a indústria de cerveja, por exemplo, que doa muito dinheiro para candidatos, conseguiu retirar do PL as restrições à publicidade de bebidas alcoólicas, talvez o único item positivo do texto original).
É assim que um projeto vira lei no Brasil de hoje: sem pesquisa, sem debate, sem clareza sobre os interesses financeiros envolvidos, sem ouvir a sociedade. Ao final do processo, teremos um país mais violento e menos saudável. Não me admira que as pessoas estejam insatisfeitas.
*
Foto: Dulla (para a capa da SUPER) – Todos os direitos reservados.
(Se você quiser uma análise muito mais profunda sobre as razões pelas quais a política brasileira não funciona, não perca a edição da SUPER que está nas bancas, com a capa “Por que Nossa Política é tão Burra”)

Artigo retira da revista SUPERINTERESSANTE: PARA VER MAIS, CLIQUE AQUI.

30/06/2013

"O homem está evoluindo para conciliar a emoção e a razão", diz António Damásio

"O homem está evoluindo para conciliar a emoção e a razão", diz António Damásio

Em entrevista a VEJA, o neurocientista português António Damásio fala sobre como as emoções e sentimentos são essenciais ao influenciar a tomada de decisões e moldar a razão humana

Julia Carvalho


O neurocientista português António Damásio: seu trabalho mostrou como as emoções e sentimentos são inseparáveis da razão humana (Franziska Krug/Getty Images)

O português António Damásio, 69 anos, é um dos maiores nomes da neurociência na atualidade. Radicado nos Estados Unidos desde a década de 70, e professor da University of Southern California, em Los Angeles, onde dirige o Instituto do Cérebro e da Criatividade, ele conduziu pesquisas que ajudaram a desvendar a base neurológica das emoções, demontrando que elas têm um papel central no armazenamento de informações e no processo de tomada de decisões. Seus livros O Erro de Descartes (1994)O mistério da Consciência (1999)Em Busca de Espinosa (2003) e E o Cérebro Criou o Homem (2009), todos publicados no Brasil pela Cia. das Letras, tratam principalmente do papel das emoções e sentimentos na razão humana e quais são os processos que produzem o fenômeno da consciência. Em visita ao Brasil para participar da série de palestras Fronteiras do Pensamento, Damásio falou a VEJA.
Na introdução de seu último livro, O Cérebro criou o Homem, o senhor diz que acabou se desapontando com algumas de suas abordagens ao longo do tempo e decidiu começar seu trabalho de novo. Quais foram as descobertas que o levaram a repensar sua pesquisa? Ao longo desses anos todos, o estudo sobre a estrutura do cérebro avançou muito e ajudou a entender melhor certas operações, como a memória e a consciência. Além disso, por meio das minhas pesquisas pude perceber a importância das emoções e dos sentimentos na construção do nosso raciocínio. Para ter o que chamamos de consciência básica é preciso ter sentimentos. Isto é, é preciso que o cérebro seja capaz de representar aquilo que se passa no corpo e fora dele de uma forma muito detalhada. É daí que nasce a rocha sobre a qual a mente forma sua base e se edifica.
O que é a mente? Ela é uma sucessão de representações criadas através de sistemas visuais, auditivos, táteis e, muito frequentemente, das informações fornecidas pelo próprio corpo sobre o que está acontecendo com ele — quais músculos estão se contraindo, em que ritmo o coração está batendo e assim por diante. Em resumo: a mente é um filme sobre o que se passa no corpo e no mundo a sua volta.
Qual a diferença entre emoção e sentimento? A emoção é um conjunto de todas as respostas motoras que o cérebro faz aparecer no corpo em resposta a algum evento. É um programa de movimentos como a aceleração ou desaceleração do batimento do coração, tensão ou relaxamento dos músculos e assim por diante. Existe um programa para o medo, um para a raiva, outro para a compaixão etc. Já o sentimento é a forma como a mente vai interpretar todo esse conjunto de movimentos. Ele é a experiência mental daquilo tudo. Alguns sentimentos não têm a ver com a emoção, mas sempre têm a ver os movimentos do corpo. Por exemplo, quando você sente fome, isso é uma interpretação da mente de que o nível de glicose no sangue está baixando e você precisa se alimentar. 
O senhor diz que as emoções desempenham um papel muito importante no desenvolvimento do raciocínio e na tomada de decisões. Que papel é esse? Há certas decisões que são evidentemente feitas pela própria emoção. Quando há uma situação de medo, ele aconselha um entre dois tipos de decisão: correr para longe do perigo ou permanecer quieto para não ser notado. Há também decisões muito mais complexas, como, por exemplo, aceitar ou não um convite para jantar. Nesse caso, a emoção tem um papel de primeiro conselheiro, um primeiro indicador do que se deve fazer.  Você pode querer ir, mas ao mesmo tempo há qualquer coisa no comportamento da pessoa que o faz desconfiar de que ela pode não ser sincera. E o que é isto? É uma reação emotiva, a emoção participando da sua decisão. 
Então é a emoção que nos fornece o que chamamos popularmente de instinto ou sexto sentido? Instinto é uma palavra que deve ser reservada para certas coisas muito fundamentais, como o instinto sexual ou de alimentação. Eu diria que a emoção fornece incentivos. As emoções, quer as positivas quer as negativas, podem ter uma enorme influência naquilo que nós pensamos. Mesmo as pessoas que se dizem muito racionais não podem separar as duas coisas. Por exemplo: imaginemos que um chefe esteja entrevistando uma pessoa para uma vaga. O currículo da pessoa é ótimo e as referências também, mas algo diz que ela não vai dar certo na empresa. Esse 'algo me diz' é a emoção falando. Algo no comportamento dessa pessoa evoca uma emoção negativa que leva o chefe a ficar com um pé atrás.
O que pode causar essa desconfiança? O ser humano avalia uma outra pessoa principalmente pela voz e pela expressão facial dela. Assim, a forma como a pessoa olha para você pode parecer insolente; ou um jeito de mexer a boca faz parecer que ela não é sincera.
Se toda a nossa percepção do mundo é afetada pela emoção, como podemos confiar nos nossos julgamentos? As emoções foram extremamente bem sucedidas, ao longo da evolução, em nos manter vivos. O medo fez com que nos expuséssemos menos ao perigo e tivéssemos mais chance de sobreviver. A alegria nos deu incentivo para fazer o que precisamos para prosperar: exercitar a mente, inventar soluções para problemas, comer, nos reproduzir. Emoções como a compaixão, a culpa e a vergonha são importantes porque orientam nosso comportamento moral. Se você fizer qualquer coisa que não está correta em relação a outra pessoa, vai se sentir envergonhado e terá um sentimento de culpa. Isso é muito importante porque vai ajudar a manter a sua conduta de acordo com a convivência em sociedade. Uma coisa que falta aos psicopatas é exatamente esse sentimento de culpa, de vergonha. Os sentimentos são, portanto, fundamentais para organizar a sociedade e foram fundamentais para a formação dos sistemas moral e judicial. Mas as emoções por si só têm limites. Para vivermos em sociedade no século XXI, precisamos muitas vezes ser capazes de criticar as nossas próprias emoções e dizer não a elas. E a única maneira de ultrapassar as emoções é o conhecimento: saber analisar as situações com grande pormenor, ser capaz de raciocinar sobre elas e decidir quando uma emoção não é vantajosa. Há um nível básico em que as emoções ajudam, e se você não tem esse nível você é um psicopata. Mas há um nível mais elevado em que as emoções têm de ser não as conselheiras, mas as aconselhadas. 
As emoções são condicionadas pela vivência em sociedade? As emoções são em grande parte inatas, mas nos primeiros anos de vida são condicionadas e sintonizadas com a sociedade. Alguns mamíferos têm emoções mais elevadas, como a compaixão, especialmente na relação entre mães e filhos. As mães de cães e lobos tratam seus filhotes com um carinho que é emocional e é totalmente inato, ninguém as ensinou. Há elefantes que quando perdem um companheiro ficam não só tristes como deixam de brincar e são capazes até de fazer uma espécie de luto. Claro que nada disso foi ensinado, é tudo inato. O que acontece com os seres humanos é que esses programas inatos têm sido, através de milhares de anos, refinados e melhorados por aspectos sócio-culturais. Hoje em dia, evidentemente, nossa estrutura moral não é inata. Ela tem sido condicionada pela história da nossa sociedade com elementos que têm a ver com a religião, a justiça e a economia, estruturas que são resultado da vida humana em sociedades complexas. 
Se as emoções podem moldar o raciocínio, o oposto pode acontecer? Isto é, o raciocínio pode alterar nossas emoções? Claro, e é aí que está a grande beleza e a grande complicação dos seres humanos. É aí que você vai encontrar todos os grandes dramas da história, aquilo que Sófocles ou Shakespeare captaram em suas peças. Os grandes dramas de reis e rainhas, príncipes e plebeus, é o constante conflito entre aquilo que são os conselhos da emoção e do instinto, por um lado, e a influência que vem do raciocínio, do conhecimento e da reflexão. Essa é a grande base da tragédia grega ou shakespeariana. Nós, na medida em que as sociedades evoluem, estamos caminhando para uma maior harmonia entre o lado emocional e instintivo e o lado racional e de reflexão. Essa harmonia ainda não se estabeleceu e não vai acontecer nem na minha geração nem na sua. É um trabalho por se concluir. Mas um dia, a convivência em sociedade, que exige que se ponha razão e emoção na balança o tempo inteiro, vai conseguir equilibrar os dois lados. 
E como ocorre esse condicionamento das emoções? É nos primeiros anos de vida que podemos inculcar valores e formas de raciocínio através da repetição de exemplos. Eles são o alicerce da construção da nossa moral. Do ponto de vista do cérebro isso é muito curioso porque é quase uma negociação entre suas partes. Há partes muito antigas em termos de evolução, como o tronco cerebral, e muito mais recentes, como o córtex cerebral. No córtex cerebral estão as grandes representações que constroem a mente: visão, audição, tato. Todas essas representações se constroem ali, e da ligação entre elas se dá o raciocínio. Mas o córtex cerebral precisa negociar com regiões do cérebro que estão no tronco cerebral e são as responsáveis pelos impulsos e as reações rápidas. É dessa negociação que surge o conceito de que algo é permitido ou não. Você repete, repete, repete até que as duas partes entrem em consenso.
É possível recondicionar os sentimentos já na vida adulta? É possível, porém é muito mais difícil e nem sempre é um trabalho bem sucedido. Se você tem uma pessoa que começou a vida como um sociopata, é extraordinariamente difícil tornar essa pessoa um ser normal em relação a comportamento social. Isto porque seria necessário fazer todo o processo que se faz numa criança, mas o paciente já tem autonomia para não aceitá-lo.
Como raciocinamos melhor? Felizes ou tristes? A felicidade está ligada a certas moléculas químicas e a tristeza a outras. Quando estamos felizes as imagens se sucedem com mais rapidez e se associam mais facilmente. Na tristeza as imagens passam muito mais devagar e ficam como que impressas ali por um tempo. O ponto ideal para a efetividade do raciocínio é a felicidade com uma ponta de tristeza — porque na euforia, o pensamento se embaralha.

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Festa junina na cracolândia terá comida grátis e roda de samba formada por usuários

Festa junina na cracolândia terá comida grátis e roda de samba formada por usuários

RICARDO SENRA

Albertina Galvão nasceu em Jaú, interior de São Paulo, há 70 anos. De lá para cá, como assistente social, trabalhou na antiga Febem, foi parceira do sociólogo Betinho (1935-1997), organizou encontros em defesa de travestis, protestou pelos direitos de moradores de rua e teve papel importante nos primórdios do que conhecemos hoje como Parada Gay e Marcha da Maconha.
Sua nova empreitada é a primeira Festa Junina da Cracolândia, que ocorre na tarde deste sábado (29), na alameda Dino Bueno, perto da estação da Luz (centro de São Paulo).

Criado por Tina há um ano, o projeto "Aquele Abraço", que assina a festança, defende a participação dos usuários de crack nas políticas públicas e vem ganhando voluntários pela cidade. Tudo começou com os passeios noturnos da aposentada, que sai de casa uma vez por semana para distribuir abraços e jogar conversa fora com os usuários da região.
Entre fitas K7, garrafas de vinho produzido em acampamentos do MST, quadros com poemas de Brecht, trepadeiras, um CD da Madonna, um pequeno altar e pilhas de jornais e revistas antigos, Tina recebeu a reportagem da sãopaulo na sala de seu apartamento, em Santa Cecília (centro).


Aposentada que distribui abraços na região conhecida como cracolândia vai organizar festa junina neste sábado (29)
sãopaulo - Por que circular à noite pela cracolândia?
Albertina Galvão - A ideia nasceu há um ano, junto à discussão sobre a internação compulsória. Usuário não é flor, não é tomate. Somos todos pessoas. Temos vontades e necessidades individuais. E eu quero saber o que eles querem, do que precisam, porque melhor que fazer "por" eles é fazer "com" eles. Esse é meu lema: "quem pita é quem apita".


De onde surgiu a proposta da festa junina?
Essa é uma data que faz parte da memória de todo mundo, todos nós participamos de quadrilhas, comemos docinhos típicos, pulamos fogueira. Comentei sobre isso com o pessoal da cracolândia e todos ficaram muito contentes. Então decidimos seguir em frente.


E como vai ser a festança?
A partir das 14h daremos início aos comes e bebes: cachorro-quente, pipoca e doces, tudo de graça. As doações chegaram dos bares, moradores e dos próprios usuários da região. Teremos bandeirinhas, balões e um grupo de samba maravilhoso formado pelos usuários para animar a festa. Também vai ter uma mesa de debate em que serão mostrados diferentes trabalhos realizados com o pessoal da cracolândia e ligados a direitos humanos. Além dos arquitetos Arnaldo de Melo e Felipe Villela, do Aquele Abraço, o [cartunista] Laerte, a [defensora pública] Daniela Skromov e o [psicanalista] Antonio Lancetti já estão confirmados.


De onde vem seu interesse por causas sociais?
Vem dos meus pais. Minha mãe recolhia pessoas para comer em casa. Tínhamos um quarto onde crianças da rua volta e meia dormiam. Os parentes sem grana passavam longas temporadas conosco. Entre 18 e 20 anos, eu já era chamada de "vermelhinha" em casa. Me formei como assistente social e, em 1968, saí de Jaú e vim para São Paulo trabalhar na antiga Febem.


Deve ter sido uma experiência intensa...
Lá eu entendi o que é a exclusão e decidi dedicar minha vida a esse tema. Depois trabalhei com mendigos e com travestis, em um grupo de orientação a trabalhadores do sexo. Fui parar na Ação da Cidadania, onde conheci o Betinho. Ele simbolizava mais que comida a quem tem fome. Ele era cidadania, era educação, era ética na política.


Há muitas imagens religiosas em sua casa. Você é católica praticante?
[Tina se levanta e traz um pequeno busto de Lênin. "Olha que bonitinho ele!"] Sou católica apostólica romana. Mas sei que meu discurso é diferente do da igreja. Adoro São Francisco de Assis, Frei Galvão é meu "santo parente". Na hora do 'pega pra capar' a gente pede a bênção.


Aonde você pretende chegar com "Aquele abraço"?
Queremos um espaço físico para acolher. Os usuários têm que dormir, tomar banho. O crack dá uma leseira que deixa eles dormentes. Tem que respeitar isso. Não são vagabundos, é gente cansada pela droga. Lá poderemos fazer oficinas, aulas de costura, criar fantasias para o carnaval. Quero encher aquele lugar e grafitar a rua do Triunfo inteira.


Já passou algum perigo por lá?
Nunca. As pessoas acreditam em mim. A gente tem que mostrar afeto e respeito pelo olhar. Ao contrário: já ganhei muita coisa dos "nóias". Um dia eles fizeram panqueca de carne e me deram um pouco. É o sabor que eu mais gosto, estava ótimo.


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