Carl Hart: "O vício é efeito de um mundo doente, não a causa"
Para o professor de neurociência da Universidade Columbia, usuários de drogas precisam de oportunidades e atenção, não de cadeia
Carl Hart cresceu num bairro de negros em Miami, nos Estados Unidos. Usou drogas, roubou e portou armas. Em iguais condições, amigos seus foram presos e continuaram marginais. Hart não. Tornou-se professor de neurociência da Universidade Columbia – é o primeiro americano negro professor de ciências na instituição, fundada em 1754. Mostrou que ratos, livres para consumir drogas, o fazem até morrer – mas deixam o vício diante de outras recompensas. Hart veio ao Brasil divulgar o livro Um preço muito alto(editora Zahar). Na obra, ele conta sua história e afirma que o problema não é a liberdade de consumir drogas, mas as condições sociais que levam muitos ao vício.
ÉPOCA – Apesar de haver tantos viciados, o senhor afirma que o consumo de drogas não é um problema. Por que não?
Carl Hart – O uso de drogas não é o problema. O principal problema é pensar por que um pequeno número de pessoas se entrega ao consumo de drogas. Elas se entregam por ter distúrbios psiquiátricos, podem ser depressivas, ansiosas, esquizofrênicas. Por ter alguma doença mental que as leva às drogas como tentativa de lidar com isso. Essa é uma possibilidade. Outros podem ser viciados por não ter opções melhores na vida. Para eles, o uso de drogas parece a melhor opção. E há quem se vicie porque não aprendeu as habilidades adequadas para lidar com o uso de substâncias ou atividades potencialmente perigosas. Quando pensamos sobre o uso de drogas, é importante entender que a maioria dos que usam essas drogas – cocaína, maconha – não tem um problema. Se a maioria dos que usam cocaína não tem um problema, o problema não são as drogas, mas outra coisa.
Hart – Falta de dinheiro ou alternativas, que acabam por tornar a droga uma opção melhor, distúrbios psiquiátricos ou imaturidade para lidar com algo que, consumido em excesso, pode se tornar perigoso. Esses aspectos devem ser tratados. Nenhum deles tem a ver com as drogas em si.
ÉPOCA – Que outra coisa?
ÉPOCA – Em sua visão, viciados sofrem pela falta de melhores oportunidades, de atenção à saúde mental e educação. Nada disso tem a ver com as drogas. Mas liberar o consumo de entorpecentes não resolveria as falhas da sociedade. Não poderia agravar o problema das vítimas dessas falhas, ao facilitar o acesso às drogas?
Hart – Portugal descriminalizou as drogas há 13 anos e não agravou seus problemas. Pelo contrário, tornou-se um exemplo mundial de reabilitação de viciados.
ÉPOCA – Em entrevista a ÉPOCA, João Goulão, responsável pela política antidrogas de Portugal, disse que o sucesso no tratamento de viciados foi favorecido pelo tipo de droga popular no país, a heroína. É possível substituir a heroína por drogas menos viciantes, numa terapia gradual. Não há substituto para crack e cocaína, drogas populares no Brasil.
Hart – Quando oferecemos a droga substituta, também garantimos ao viciado o acesso a tratamento médico e psicológico. É um programa. Podemos fazer o mesmo com a cocaína, mas não fazemos.
ÉPOCA – Goulão admite que o uso de drogas em Portugal aumentou após a liberação. O senhor não teme o aumento do consumo?
Hart – O consumo de álcool é legal no Brasil?
ÉPOCA – Sim.
Hart – Então qual a resposta para sua pergunta?
ÉPOCA – O álcool é liberado no Brasil e, nem por isso, as consequências do consumo deixam de ser um problema social.
Hart – Se o alcoolismo é um problema no Brasil, você diria que álcool deveria ser proibido?
ÉPOCA – Qual sua opinião?
Hart – É claro que não diria. Porque a maioria das pessoas que consomem álcool não tem nenhum problema. Esse é meu argumento. Sempre haverá quem tenha problemas com atividades potencialmente perigosas, como beber álcool, dirigir rápido demais, fazer sexo sem proteção ou consumir drogas hoje ilícitas. É trabalho da sociedade descobrir como diminuir o risco dessas atividades. Queiramos ou não, elas continuarão aí. É estúpido apenas sugerir a proibição dessas atividades. Não estaremos lidando com elas, nem agindo como uma sociedade responsável.
ÉPOCA – Dirigir rápido demais ou fazer sexo sem proteção são atividades potencialmente perigosas, mas incapazes de provocar dependência química, como ocorre com o uso de crack e cocaína. É coerente defender a liberdade de consumo de substâncias capazes de tolher a liberdade de escolha?
Hart – Não há nenhuma droga que, uma vez experimentada, retire de imediato a possibilidade de escolha. Esse é um conceito errado, um mito. As drogas mais viciantes são nicotina e tabaco. Um em cada três usuários de tabaco torna-se viciado. Um em cada cinco usuários de heroína desenvolve o vício. O álcool também vicia cerca de 20% dos usuários. A cocaína vicia menos, um em cada seis usuários, e só então vem a maconha, capaz de viciar 9%.
ÉPOCA – Não avaliamos o risco de uma droga apenas por seu poder de causar dependência. O cigarro pode ser mais viciante que a cocaína, mas afeta menos o comportamento do usuário.
Hart – Se eu pudesse pegar carona com um motorista sob efeito de álcool ou cocaína, escolheria o usuário de cocaína. O álcool deixa o indivíduo menos vigilante e mais distraído, impede que ele dirija direito. A cocaína, ao contrário, o deixa mais alerta. Nas Forças Armadas dos Estados Unidos, pilotos de avião tomam anfetaminas para ficar alertas em missões longas. A noção de que alguém não pode usar drogas e cumprir tarefas é errada. Há quem use essas drogas o tempo todo e cumpra as tarefas que tem de cumprir. Alguns tomam doses um pouco altas. Mas, outra vez, isso está relacionado à educação para um consumo seguro e responsável.
ÉPOCA – Como podemos educar para um consumo de drogas seguro e responsável?
Hart – O primeiro passo é combater a desinformação sobre as drogas. Há muitos mitos, muita informação incorreta.
ÉPOCA – Por que, em sua opinião, o público é desinformado sobre as drogas?
Hart – O público é informado sobre drogas pelas pessoas erradas. Damos atenção exagerada a agentes de segurança pública, como policiais. Eles não têm nenhuma instrução em farmacologia, psicologia ou qualquer outra ciência comportamental. Damos atenção a políticos. Interessa a eles propagar mitos. Ao culpar as drogas por todo tipo de problema, eles se veem desobrigados de encontrar soluções para ajudar quem precisa, como os mais pobres. Tudo o que os políticos têm a dizer é: “Enfrentaremos as drogas”. Eles precisam, na verdade, enfrentar problemas como moradia e desemprego. Se os políticos não lidam com essas questões, é óbvio que a sociedade terá problemas. O vício em drogas é efeito de um mundo doente. Não a causa.
ÉPOCA – O senhor defende a liberação ou a descriminalização do consumo de qualquer droga?
Hart – Defendo a descriminalização. Quer dizer: não prender usuários por porte de drogas e não registrar o consumo na ficha criminal. A polícia deixaria de prender e encarcerar gente que nada tem de criminosa. O dinheiro gasto em perseguir e encarcerar usuários poderia ser investido em iniciativas que realmente ajudem a sociedade.
ÉPOCA – O senhor não acha que usuários de drogas continuarão alvo de preconceito, com ou sem registro criminal?
Hart – Os três últimos presidentes dos Estados Unidos usaram drogas e nunca foram presos. Livres, conseguiram ser presidentes. Estamos cercados de usuários de drogas respeitáveis, que colaboram para uma sociedade melhor. Para aqueles que são presos, os horizontes pessoais ficam reduzidos.
ÉPOCA – O senhor é o primeiro negro americano a ensinar ciências na Universidade Columbia. Como a falta de negros na comunidade científica distorce as conclusões de pesquisas e a produção de conhecimento?
Hart – Não sei se a falta de negros na comunidade científica afeta a produção de conhecimento mais do que qualquer outra coisa em nossa sociedade. A questão racial influencia tudo. Sendo um cientista negro, um dos aspectos que mais me chamam a atenção é o grande número de negros presos por falta de informação sobre as drogas. Parece-me antiético não dizer nada sobre a grande injustiça racial existente nas prisões, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil. Isso me obriga a denunciar.
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