Após seis meses, prefeitura de SP prepara nova fase de programa contra crack
O programa, que começou em janeiro de 2014 na região da Luz, no centro de São Paulo, recebeu nesta quinta-feira a visita do príncipe Harry.
Desde seu início, a iniciativa beneficiou usuários como Evandro Martins, de 28 anos, que se mudou para um quarto de hotel na área chamada de "Cracolândia" e está recebendo remuneração por trabalho diário. O programa hospeda os participantes em oito hoteis da região.
Em fevereiro do ano passado, Evandro foi à região para gastar "só R$ 4" em crack e não conseguiu sair até agora. Após entrar no programa e trabalhar como varredor de ruas e bibliotecário, diz se sentir mais seguro.
"É um dinheiro está lá toda a semana. Antes eu gastava tudo o que eu tinha em crack, agora já estou conseguindo comprar roupas e visitar minha mãe em Santos. Também estou usando menos crack".
Redução de danos
Ele é um exemplo do que a prefeitura define como redução de danos. O programa é uma das grandes apostas da administração de Fernando Haddad e inclui, além dos hoteis, três refeições e uma renda de R$ 15 por dia para cada participante.
Os inscritos devem cumprir pelo menos quatro horas de trabalho e duas horas de capacitação por dia. Também podem participar de atividades culturais em horários noturnos e durante os fins de semana.
O objetivo, segundo as autoridades, é "recuperar a dignidade" dos usuários que vivem nas ruas e criar condições para que eles busquem tratamento médico por iniciativa própria.
Consideramos um sucesso o fato de as pessoas estarem aderindo ao programa e tentando concretizar uma nova opção de vida. Mas é um processo lento e complexo, a gente dá a estrutura e eles vêm com o esforço", disse à BBC Brasil a secretária de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, Luciana Temer.
Ela afirma que o programa já está dando resultados e que por isso passará por uma avaliação "mais fina" para entrar na nova fase, onde aqueles que estão apresentando bons resultados serão encaminhados a um emprego formal.
Dos 422 cadastrados, 23 receberam atestado médico de aptidão para o trabalho no último mês e outros 122 estariam em tratamento contra o vício.
"Esses vão para um outro espaço, fora daquela região, onde continuarão sendo assistidos", disse a secretária.
De acordo com Temer, a segunda fase acontecerá ainda este ano e abrangerá até cem pessoas (o projeto original continua com novos participantes).
Parte receberá apoio para conseguir um emprego formal e outros integrarão uma cooperativa de jardineiros (o projeto já inclui treinamento em jardinagem e paisagismo).
A secretária diz que aqueles que não tiverem desejo de continuar no De Braços Abertos poderão ser desligados para dar oportunidade a outras pessoas.
Renda fixa
Francisco Nazareno Moreira dos Santos, de 41 anos, participa da capacitação em jardinagem.
"Antes eu frequentava um albergue, mas era pior porque você entra às 17h e tem que sair de manhã, não pode ficar durante o dia. Agora eu passo a tarde aqui (no quarto de hotel) e não fico lá no fluxo (gíria para o grupo que consome crack na rua)", disse.
"O dinheiro é pouco, não é como o que eu ganhava em uma transportadora antes de cair no crack. Não consigo comprar as roupas que eu quero, mas já consegui levar dinheiro para o meu filho de 12 anos."
A possibilidade de ter uma renda fixa é um dos principais atrativos aos participantes. Mas Francisco também faz críticas.
"Estou nesse programa há três meses e sou um dos caras com menos faltas, tenho só duas. O que eu reclamo é que alguns não trabalham e recebem mesmo assim", diz.
Cerca de um quarto dos beneficiários do programa não consegue cumprir com as horas de trabalho, segundo estimativas oficiais - principalmente pela dificuldade em reduzir o consumo da droga. Mais da metade dos inscritos atuam como varredores de ruas.
Programa 'ao contrário'
A opção pela redução de danos não é unanimidade entre especialistas do setor. Alguns defendem que usuários passem por um período de internação, mesmo involuntária, antes de começar um processo de ressocialização.
Para a psiquiatra Ana Cecília Marques, presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Drogas, é muito difícil garantir que usuários do crack permaneçam em um trabalho antes de passar pelo tratamento médico.
"É uma doença que compromete uma área do cérebro responsável pela função executiva. Para trabalhar ele precisa de abstinência, precisa ficar sem a droga", disse à BBC Brasil.
"O programa da prefeitura começa ao contrário. Começa pela reinserção para chegar ao tratamento. E eu considero que no caso de uma doença maligna como essa a gente não deva proceder assim."
A secretária Luciana Temer, no entanto, diz que não faria sentido dar apenas tratamento de saúde para essas pessoas, caso elas tivessem que voltar a morar nas ruas após a internação. "Estamos criando um vínculo de confiança entre o poder público e os usuários", afirma.
Odimar Reis, assessor técnico de saúde mental álcool e drogas da Secretaria de Saúde, afirma que 22 usuários conseguiram voltar a morar com familiares e que 90 pessoas estão nas ruas da região, fora do programa.
Números oficiais dão conta de que a redução do consumo entre os inscritos no programa teria sido entre 50% e 70%. O consumo médio, que variaria de 10 a 15 pedras por dia, caiu para cinco, segundo a prefeitura.
O dado é contestado por críticos do programa, que afirmam que muitos beneficiários usam a droga dentro dos hoteis, o que dificultaria o controle das equipes de atendimento. Reis diz que mesmo nos hotéis o consumo está diminuindo.
Droga e exclusão
O psiquiatra Thiago Fidalgo - que é coordenador de assistência no Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD) da Unifesp, junto ao professor Dartiu Xavier da Silveira, um dos idealizadores do projeto da prefeitura - afirma que com a oferta moradia, renda e trabalho, os usuários já conseguem "uma redução bastante expressiva do consumo de substâncias".
Mas ele ressalta que a ideia original do projeto previa um tratamento médico para os beneficiários - caso eles optassem pelo atendimento -, que atualmente não seria satisfatório.
"O De Braços Abertos é um programa muito inovador no Brasil. Ele encara a droga como um sintoma da exclusão social que a pessoa sofre e tenta resolver as outras vulnerabilidades que o usuário tem sem focar diretamente na droga", disse à BBC Brasil.
"Mas este segundo passo, de oferecer um tratamento especializado para a dependência química, ainda está deficiente", afirma.
Tanto Fidalgo quanto Ana Cecília Marques afirmam que deveria haver também um registro maior de dados sobre a população envolvida no projeto.
"Um programa tão inovador precisa de dados mais científicos para que sua eficácia possa ser avaliada", diz Fidalgo.
Um levantamento feito em 2012 pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas de Álcool e outras Drogas (Inpad) diz que aproximadamente 2 milhões de brasileiros já usaram crack ou oxi pelo menos uma vez na vida.
Saiba mais aqui.
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