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27/07/2014

Da Internação Compulsória aos Braços Abertos: continuidade e inflexão na atenção aos usuários de crack.

Da Internação Compulsória aos Braços Abertos: continuidade e inflexão na atenção aos usuários de crack.

Ygor Diego Delgado Alves. Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia.


“Quem inventou o Braços Abertos fui eu”.

A frase acima foi ouvida por este pesquisador ao conversar com um beneficiário, termo utilizado pela Prefeitura do Município de São Paulo (PMSP) para se referir aos incluídos no Programa Braços Abertos (PBA). Trata-se de um usuário de crack de trato razoavelmente difícil para as diversas equipes da prefeitura trabalhando no local, por às vezes se mostrar violento, mas orgulha-se de ter contribuído para a construção de uma proposta, ao participar de reuniões preparatórias com o prefeito Fernando Haddad, que faz cinco meses vem transformando a vida de centenas de usuários de crack da região da Luz, no centro da cidade de São Paulo. Antes do programa, eles viviam no local sob o
peso do estigma do zumbi morto vivo (BOES, 2011), infelizmente, este estigma ainda se encontra presente em publicações recentes, porém vem perdendo importância para uma nova visão do usuário de crack.
Se até o melancólico caso da gestão Kassab frente à PMSP, a certeza corrente era da incapacidade generalizada entre os usuários de crack, retratados como zumbis, de exercer sua vontade, o PBA gestado em encontros destes usuários diretamente com o prefeito da maior cidade do país veio propor o reconhecimento desta vontade. Os encontros entre beneficiários e o prefeito permanecem mensais, ampliados pela participação de lideranças de movimentos sociais, entidades de classe e técnicos responsáveis por um programa em permanente construção. Seu início, dado em meados de 2013 foi marcado pela certeza em se contrapor às políticas pautadas pela repressão e pela internação em comunidades terapêuticas, muitas vezes de forma involuntária e até mesmo compulsória, levadas a frente pelo governo do Estado de São Paulo, particularmente na gestão Geraldo Alckmin.

Quem? Ou melhor, como se ‘inventou’ o Braços Abertos.

O PBA é um programa em permanente construção e esta construção data da elaboração do Plano de Governo “Um tempo novo para São Paulo” do então candidato a prefeito Fernando Haddad. Assim, um plano de intervenção positiva na Luz foi traçado no sentido de levar cuidado, assistência e dignidade aos usuários de crack. Um importante sinal de seu caráter diferenciado foi ter a coordenação do Grupo Executivo Municipal (GEM), responsável pela concepção e implantação do programa, sob a responsabilidade da Área Técnica de Saúde Mental, Álcool e Drogas da Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
Neste sentido, os hoje beneficiários do PBA tem sua situação cotidiana, considerada e avaliada prioritariamente sob a perspectiva da saúde. Em primeiro plano encontram-se além da SMS, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), a Secretaria Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo (SDTE) e a Secretaria Municipal de Segurança Urbana. Esta última, com presença decrescente na gestão local do programa, segundo declarações de técnicos presentes desde sua implantação, com quem pudemos dialogar. Em um segundo plano vem as secretarias de cultura, esporte e educação.
O PBA nasce, portanto, sob o espírito da 5ª Conferência Municipal de Políticas de Atenção às Drogas (Compad), realizada pela SMDHC, GEM e pelo Conselho Municipal de Políticas Públicas de Drogas e Álcool, o Comuda. A conferência foi precedida por reuniões preparatórias abertas feitas por representantes dos três entes municipais acima, nas regiões leste, oeste, sul e central da cidade. Propostas feitas na 5º Compad como a importância da articulação intersetorial, a composição do Consultório na Rua (CR) com “redutores de danos, equipe de saúde mental articulada com assistência social” (ASSESSORIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE DROGAS, 2013, p. 5).
Assim como, a importância de uma idéia de cuidado não focada apenas na internação, a promoção do matriciamento entre as redes responsáveis pelo atendimento aos usuários de drogas e a capacitação dos profissionais ligados à política sobre crack, álcool e outras drogas foram todas propostas levantadas na conferência que ganharam importância dentro do PBA.
Nas pré-conferências de Saúde Mental, DST/HIV/AIDS e Saúde da População negra, as preocupações presentes no desenho do PBA como trabalhar em uma estratégia de RD, os Consultórios na Rua, e a ação intersetorial com presença de cultura, esportes, geração de renda e emprego, estavam presentes (SECRETARIA MUNICIPAL DA SAÚDE, 2013). A ação intersecretarial destinada a ofertar abrigamento, tratamento de saúde, alimentação, atividade ocupacional, capacitação profissional e auxílio financeiro aos beneficiários incluídos na execução de serviços de zeladoria nas ruas teve início dia 14 de janeiro de 2014.
Após dois dias, todos os cento e quarenta e sete barracos distribuídos entre as ruas Dino Bueno e Helvétia, local onde hoje se centraliza a Cracolândia haviam sido retirados. A adesão ao Programa Braços Abertos (PBA) foi da totalidade dos ocupantes e se deu nos dias anteriores pelos beneficiários, ao serem contratados pelo Programa Operação Trabalho (POT) da Secretaria Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo (SDTE) para trabalharem em atividades de zeladoria na região, ocupação pela qual recebem um auxílio financeiro no valor de R$ 15 por dia de trabalho, incluindo os finais de semana para os assíduos.
Esta forma de contratação é uma adaptação do POT e compreende um valor de auxílio pecuniário mensal de R$ 450,00 por 20 horas semanais de trabalho, ou quatro horas diárias nos chamados dias úteis. O POT prevê o investimento total de um salário mínimo e meio por beneficiário. Como custo para a PMSP há também o pagamento das vagas em hotéis da região e alimentação correspondente a três refeições diárias no restaurante Bom Prato, localizada na Rua Dino Bueno.
Além de cursos de capacitação, a serem ofertados a partir de aptidões e demandas dos beneficiários e o pagamento da equipe de técnicos e orientadores, assim como, dos gestores do serviço, a Organização Não Governamental (ONG) Brasil Gigante.


A Frente de Trabalho e o Trio

A frente de trabalho, parte do PBA é gerida por uma ONG, a Brasil Gigante (OBG) até então dedicada à gestão de creches e abrigos para crianças e adolescentes, assim como de um telecentro. Esta ONG foi contratada em caráter emergencial para gerir o programa em seus primeiros seis meses.
Uma licitação será aberta para a contratação de entidade gestora a partir deste período. Em contato com a OBG pudemos acompanhar o trabalho das equipes no trecho, como é chamado o caminho percorrido por cada equipe nos arredores do bairro dos Campos Elíseos.
Após acordarem e saírem do hotel, os beneficiários se dirigem ao restaurante do Bom Prato, localizado na Rua Dino Bueno para tomarem o café da manhã. A entrada no restaurante é possibilitada por um crachá distribuído pelo orientador social a cada um de sua equipe de vinte beneficiários.
Dificilmente a equipe estará completa, os ausentes serão objeto de busca ativa por parte dos quarenta e quatro orientadores socioeducativos de Smads e agentes comunitários de saúde da SMS. As informações sobre a ausência no trabalho para a posterior busca ativa são obtidas por estes profissionais após o café da manhã, no local de saída das equipes.
Em seguida, os agentes sociais de Smads e agentes comunitários de saúde responsáveis por cada grupo de vinte beneficiários se dirigem aos hotéis para visitá-los e verificar os motivos da ausência na Frente de Trabalho. Entre treze e catorze horas, o trio composto pelos agentes sociais de Smads e agentes comunitários de saúde da SMS, acrescido dos orientadores sociais da OBG se reúne para discutir as diversas demandas surgidas.
A busca ativa é feita dentro dos hotéis com os membros do trio indo de porta em porta. Ao final do mês de fevereiro de 2014, apenas duzentos entre quatrocentos e vinte e nove participantes do PBA se dedicam aos serviços de zeladoria, alguns jamais apareceram para trabalhar, outros desistiram pelos mais diversos motivos, como os de saúde. Em meados de abril, este número havia subido para duzentos e noventa e três beneficiários participando ao menos uma vez naquele mês. 
Há casos de nomes constando nas listas das equipes de vinte beneficiários, mas as pessoas nunca apareceram para trabalhar, assim como de inscritos na primeira fase do programa ressurgindo após três meses de sua implantação. Em todo caso, não há exclusão do programa dada sua baixa exigência. Mesmo com meses de ausência, eles são incluídos.
Os membros das equipes citadas acima, originalmente trabalhavam apenas em um mesmo hotel, porém, devido à necessária flexibilidade exigida pelas características dos beneficiários há uma considerável flutuação deles entre os apartamentos e mesmo entre os hotéis. Isto se dá pelos mais variados motivos desde separações de casais, passando pelo desejo de ter uma acomodação melhor, até a simples curiosidade de conhecer e se alojar em quarto ou hotel diferente.
Assim, os trios devem dar conta de vinte beneficiários distribuídos nos mais variados hotéis. Isto marca um dos pontos fortes do programa, o atendimento integrado, individualizado e integral ao beneficiário proporcionado pelo trabalho de profissionais ligados às áreas de saúde, assistência e trabalho em contato diário com o beneficiário.
Existe uma preocupação dos técnicos, particularmente da saúde mental em garantir que nos encaminhamentos dos beneficiários, todos se atentem às diferenças entre os serviços oferecidos pela PMSP e pelo Governo do Estado, e da importância de se referenciarem nos serviços municipais e não nos oferecidos pelo poder estadual. Como vimos acima, grosso modo poderíamos considerar os serviços estaduais como dando certa prioridade à internação em comunidades terapêuticas (CT), enquanto a PMSP priorizaria a rede CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Isto não impede a abordagem de beneficiários por agentes sociais do Instituto Mensageiros para encaminhamento a comunidades terapêuticas, através do Programa Recomeço do governo estadual.


A tenda e o fluxo

O PBA possui sede própria independente da sede alugada pela OBG no Largo Coração de Jesus, se localizada a dois quarteirões desta, quase na esquina das ruas Helvetia e Cleveland. É uma construção modesta, separada da rua por uma grade e dotada de portão também gradeado. Possui uma tenda de aproximadamente cento e vinte metros quadrados e uma pequena edificação com uma sala de reuniões, cozinha e banheiros para os funcionários e outros dois banheiros usados normalmente pelos beneficiários e demais usuários de crack frequentadores do fluxo.



Isto posto, podemos voltar nossa atenção à sede do PBA. Ela está localizada em frente ao fluxo da esquina das Ruas Helvetia e Cleveland e dele separada por uma tela de metal e um portão, também de tela, permanentemente aberto. A identificação do local é feita por um desenho sobre um pano com o nome e logo do PBA amarrado entre duas colunas da tenda e voltado para a rua.
O fluxo passou a ser mais frequente em frente ao equipamento do PBA e menos interlocução na pesquisa etnográfica, entendida como troca. Troca de conhecimento e experiências, assim, minha vivência pregressa como usuário pesado de drogas revelou-se uma importante porta de entrada em assuntos possivelmente difíceis de tratar com ‘caretas’. No campo, rapidamente me pareceu claro a necessidade de, para ser justo com os usuários de crack em minha reivindicação da sua abertura, do revelar seus hábitos socialmente desqualificantes, eu também revelar os meus. Ser usuário de crack, não implica em ser desmedido ou descontrolado em seu uso, tão pouco nos demais consumos prazerosos, como o do alimento.

Beneficiário - Eu como só um pouco para me alimentar. Eu não tenho vício de comer. Tem pessoas que se vc botar dez pratos, ele come os dez pratos. Tem pessoas que tem vício até pra comer. Aquele olho gordo. Eu não entendo. Fica atrás desse negócio (crack) dia e noite.

Para este beneficiário, vamos aqui chamá-lo de Lucas, o exagero é primeiramente, algo a ser evitado em suas diversas manifestações e não apenas no uso da cocaína-crack. E segundo, ele caminha em conjunto no indivíduo.
Imódico em um aspecto do consumo prazeroso, descomedido em outro. Mesmo no sono, como veremos à frente, ou até no caminhar. A intemperança pode ser aqui entendida em seu sentido aristotélico como justo uso dos prazeres físicos (ARISTÓTELES, 1973).

Ygor - Vc veio em 98, pra São Paulo.
Beneficiário - É essa fase aí. Então, eu já fui traficante, já fiz de tudo. Já usei droga, já roubei, já fiz de tudo. Eu nunca vicio em nada. Não sou viciado nem em comer, eu sou.
Ygor - Risos
Ygor - Fica dia e noite no fluxo, né?
Beneficiário - É dia e noite usando esse negócio, eu não. Difícil usar. Se quiser usar hoje eu uso,se não quiser não uso. Pode ter mil usando aí.
Ygor - É. Porque tá ali do lado, é só atravessar a rua.
Beneficiário - Então, eu sou uma pessoa desse jeito, mas a maioria das pessoas não são assim.

Como vimos acima, nosso interlocutor não se considera um usuário problemático por não se deixar levar pelos outros, pelo fluxo. Eles, os demais usuários da Cracolândia podem usar e isto não o afetará. Como não é viciado sequer em comer, não se vicia nos demais prazeres aristotélicos sujeitos a intemperança, os prazeres derivados da alimentação e da bebida.
 A droga lá se encontra, disponível, porém, um ex-traficante possivelmente devido aos compromissos e responsabilidades próprias da atividade aprendeu a ter autocontrole sobre seu uso (GRUND, 1993). Esse controle pode advir também das atividades e compromissos assumidos ao tornar-se beneficiário do PBA.

Ygor - Eu mesmo não sabia usar não. Exagerava.
Beneficiário - É? Porque aí, você quer todo dia, todo dia. Muitas pessoas não pega, não. É tipo o projeto. Muitas pessoas estão firmes, trabalhando, fazendo curso.
Ygor - Mas começou o curso, já?
Beneficiário - Já. Começou o curso de jardinagem, começou o curso já no Tatuapé. Começou o curso aqui, na Porto Seguro. Vai começar o curso aqui na Barra Funda, no Boraceia. Aquilo lá é tudo curso. Eu mesmo fechei um curso lá, um curso de zelador.
Ygor - Vc vai fazer?
Beneficiário - O curso de zelador. Já sai empregado, já.

Os beneficiários comprometidos, dedicados, absortos no ‘projeto’ são os mesmos a deixar de ‘querer todo dia’. O desejo pode ser controlado, modificado, desviado em um projeto de futuro possível devido a condições ditas estruturais, econômicas, ligadas a um mercado de trabalho ávido por absorver mão de obra plenamente empregável. O 'projeto’, com seus cursos, trabalho e horários conspira juntamente com a experiência de traficante, pródiga em ensinar através do trabalho, o cumprimento de horários e compromissos. O emprego no tráfico pode, em uma conjuntura de plena empregabilidade, ser substituído pela ocupação de zelador para aquele capaz e interessado em ‘pegar firme’.

Ygor - Já, né? É porque tá faltando. Tá faltando gente pra trabalhar. O salário inicial, sabe qual que é?
Beneficiário - Inicial? Não, não sei.
Ygor - Deve ser mil e pouco, né?
Beneficiário - É. Os salários não tão ruim. Tá faltando é o trabalhador. Muitas pessoas não querem, outras não tem documento. Outros não tem endereço, outros não tem moradia, então, tá essa demanda. Esse baila, baila, aqui em São Paulo, é essa a situação.
Ygor - E vcs aqui, conseguem dar o endereço do hotel?
Beneficiário - Consegue. Dá. A ONG dá. A ONG dá a declaração de endereço.
Ygor - Ah
Beneficiário - O escritório, né? O escritório dá o endereço do hotel.
Ygor - O escritório dá o endereço do hotel como do beneficiário.
Beneficiário - É, o do hotel
Ygor - Então, o cara não está mais sem endereço. O da rua.
Ygor - Não. Ele tá num endereço fixo
Beneficiário - Isso. Porque ele tá morando naquele hotel.

Acomodados, ou alojados como hóspedes nos hotéis do entorno da Cracolândia, nas mesmas ruas outrora local exclusivo do corre, da treta, da repressão policial, da Operação Sufoco e do uso. Os beneficiários têm a oportunidade de possuir um endereço fixo para recebimento de correspondência e principalmente para fornecerem aos futuros empregadores. A documentação e a localização atestada, os cuidados com saúde, cursos e indicações para vagas abundantes de trabalho com salários razoáveis para as expectativas destes usuários de crack vão compondo o arranjo estrutural possibilitador de uma visão de futuro e autocontrole do uso de crack.

Beneficiário - Então, tudo é uma vantagem, porque o prefeito, ele tá querendo organizar as pessoas. As pessoas que tá com a mente ainda com visão. Certo? Pra fazer um curso, procurar trabalho. Vc tá entendendo? Que tá um mês, dois três meses no hotel. Depois alugar uma casa,um cômodo, uma coisa pra morar. Não vai poder ficar naquele hotel toda vida.
Ygor - Mas a galera que te acompanha no trecho, que vc conhece daqui. Mudou alguma coisa na vida de alguns deles assim, melhorou?
Beneficiário - Muitos melhorou, assim, porque diminuiu de usar. Muitos não tinham documento, ta tirando. Muitos tá fazendo curso, então, tá tendo um pouco de visão, né?
Ygor - Sei. E porque que diminuiu de usar?
Beneficiário - Porque ocupou o tempo e já tem já um lugar pra dormir. Já tem um lugar pra comer.Já entra mais uma visão pra ele.
Ygor - Tem atividade de manhã, de zeladoria.
Beneficiário - Tá entendendo? Tem o curso, tem tudo, então, tudo ocupa o tempo. Certo? Não tem nem tempo pra sair pra roubar.

As visitas periódicas do prefeito Fernando Haddad à Cracolândia deixam marcas profundas nas expectativas dos beneficiários. A impressão acima, do cuidado pessoal da maior autoridade municipal com o PBA, provoca neste beneficiário o efeito de abertura de sua percepção para novas possibilidades de vida, uma nova cotidianidade normatizada, marcada pelo retorno a si, pelo autocuidado, pela troca da incerteza das consequências nem sempre apreciadas pelos próprios usuários (VARGAS, 2006), pelo previsível. O autocontrole vivido na diminuição do uso encontra-se atrelado na fala deste interlocutor à qualidade do fruir do tempo no cotidiano. Dormir, comer, trabalhar e estudar ocupam os momentos reservados à fruição da pedra e do corre, às vezes materializado nos pequenos furtos.

Ygor - Risos. O cara até pensa duas vezes. Porque a vida dele às vezes nem tá tão ruim assim. Vai, pô. Vai arriscar isso aqui, vai parar numa cadeia aí, tal.
Beneficiário - É, aí, num dá certo. Muitos vai uma vez, a polícia pega, dá um tapa. E fala ‘da segunda vez’. Aí vai aquela pressão. Então, intimida mais a pessoa. Então, vai mudando. Muitos que tem a visão aí, vai mudando. Pra muitos que a mente tá meia fraca, aí, num entra fácil. Vc ta entendendo? É essa a situação. Aí, relaxa, fica sem comida, de noite não dorme. O pessoal que dormiu a noite, de dia não vai dormir, não vai se largar (apontando para um beneficiário uniformizado dormindo sob a tenda).
Ygor - Deve ter passado a noite no fluxo e agora, deu sono, né?
Beneficiário - Dá moleza. É fica assim, ó deitado. Eu dormi a noite toda. Como é que eu vou dormir? Como é que eu vou dormir agora de dia?
Ygor - Vc dormiu a noite?
Beneficiário - Dormi a noite toda. Deito cedo. Agora, tô sem sono. Me alimentei.

Deitar-se cedo e dormir bem é fruto de negociação e convivência
proporcionada pelo tempo vivido conjuntamente. O silencio é negociado. Da dinâmica do barraco para o convívio no quarto coletivo de hotel se interpõe, certamente, outro tipo de negociação, porque agora, mediado pela OBG, pela assistente social e pelas agentes socioeducativas, assim como, e observamos em nossas visitas ao campo, mediatizado pela disciplina imposta e sempre negociada com as lideranças locais. Uma espécie de último recurso para casos mais relutantes.

Ygor - Como é que tá no seu quarto, lá? Tá bom no seu quarto?
Beneficiário - Tá bom. Cinco peão lá, tá bom.
Ygor - Tem vc e quem mais lá?
Beneficiário - Quatro colegas. Nem todos se controlam. Vai da mente, do estado da pessoa.
Ygor - Mas ninguém atrapalha sua dormida lá? Vc deita tal, fica em silêncio.
Beneficiário - Não. Sempre combina, né? Sempre se combina. Não tem jeito. Depois de um mês, dois meses dentro de um quarto, vc combina.
Ygor - Ah, entendi.
Beneficiário - De boa. Tá tendo um controle bom.

O controle exercido pela prefeitura sobre a ocupação dos quartos é
dinamizado pelo controle exercido por um ‘peão’, alcunha dada ao trabalhador operacional em São Paulo, sobre o outro ‘colega’. Para acomodar cinco usuários de crack em um quarto, certamente se faz necessária a criação de uma gama de regras de convivência a partir do diálogo e aferição de expectativas e demandas recíprocas. E este vínculo desenvolvido entre os beneficiários é somado àquele estabelecido pela convivência com as equipes de agentes socioeducativos de Smads. Abaixo, veremos como o beneficiário conhece a história de uma agente, e nesta conversa conosco, outras agentes passaram ao nosso lado, sendo introduzidas em nosso diálogo e o mesmo conhecimento de fatos da vida pessoal destas outras pôde ser por nós observado. Este fato, do beneficiário conhecer parte da história de agentes socioeducativas, nos revela além de vínculo e empatia, o intercâmbio de histórias entre eles, semelhante ao procurado por nós no momento de nossa interlocução.

Beneficiário - Mas a prefeitura não quer que fique nessa. Põe nego pra fazer curso e já quer que coloque na firma. Curso, agora, vc já sai direto empregado. Sei que o prefeito tá gastando uma verba boa, forte.
Ygor - São quatrocentos e vinte e nove já.
Beneficiário - É? Milhões?
Ygor - Quatrocentos e vinte e nove beneficiários.
Beneficiário - A prefeitura tá gastando dinheiro grande, com funcionário, né?
(Neste momento, cumprimento uma orientadora socioeducativa de Smads)
Ela paga aluguel, mora com a filha dela. Conversou comigo, já.
Ygor - Ah, vc já conversou com ela?
Beneficiário - Dessa idade, rala.
Ygor - Ela cria a filha dela.
Beneficiário - Ou filha, ou filho, não sei.
Ygor - E o trabalho delas aqui é cansativo.
Beneficiário - Ajuda muito. Dá encaminhamento,
Ygor - Isso.
Beneficiário - Tudo anotado. Trabalha bem. Uma profissão boa que a prefeitura inventou. Uma maneira de emprego e de por as pessoas pra ficar ajudando as pessoas. Menina bonita. Tudo educada.
Ygor - A maioria é estudante de serviço social.
Beneficiário - Tão estudando, aprendendo.

O caminho ‘projeto’, ‘curso’, ‘firma’, aparece como sendo lastreado pelo forte investimento público e pela determinação aparente da ‘prefeitura’ em provocar o movimento. O parasita, aquele parado na biqueira na espera de oportunidade de obter um trago, sem prestar-se ao movimento necessário do corre, ou da correria, este mal visto e mal afamado entre os usuários, pode assemelhar-se ao beneficiário incapaz de pegar ‘firme’ no ‘projeto’. Os valores dos usuários não seriam tão diferenciados dos valores do mundo do trabalho. Não nos passa despercebido o fato de ter deles partido a reivindicação ao prefeito de trabalho para todos, além de alojamento, quando das primeiras visitas deste à Cracolândia. O crack possui um ‘espírito andarilho’, o movimento dentro de si.

Ygor - Antes delas virem pra cá, eu dei um curso pra elas lá no Complexo Prates.
Ygor - Sobre droga, tal. Embora, a maioria delas conheçam lá do bairro delas. Para elas verem que quem usa crack não é transloucado.
Beneficiário - É só um assombro, fica assombrado.
Ygor - Risos. Quando tá muitos dias, aí começa a ficar meio ruinzinho.
Beneficiário - É, não tem alimentação.
Ygor - Mas o cara que é beneficiário, ele já usa, ele vai, janta, almoça.
Beneficiário - Toma um banho. Dorme. É vantagem. Muitos tá deitadão aqui. Já comeu, vai deitar. Uns toma banho, outros levanta mais tarde.
Ygor - Porque na rua, bem ou mal é ruim pra dormir. É frio né, cara?
Beneficiário - Tem que dormir no chão. E o frio? Não consegue dormir. Fica só andando. Compra um Corotinho...
Ygor - E fica só andando, né? Não consegue dormir.
Beneficiário - É. Uns colegas vêm, dá um trago de droga, já começa a andar. Quem usa droga não para, fica andando.
Ygor - Fica andando, né?
Beneficiário - A droga tem o espírito andarilho, né?
Ygor - Risos

Beneficiário - Tem uma hora que eu estou aqui sentado. Se estivesse usando droga, eu não estava aqui.


William Burroughs (2013) nos trás uma infinidade de importantes ensinamentos sobre o uso de drogas ao relatar a própria experiência como junky nos Estados Unidos da metade do século XX. Dentre estas verdadeiras lições, muitas apropriadas a analogias com o uso do crack no Brasil do século XXI, malgrado a distância geográfica e temporal entre as duas realidades e com o cuidado de promover as devidas mediações. Está a sua descrição do prazer do uso da droga, este estaria intimamente ligado às condições de uso, entendidas como a rotina do usuário, como acordar e sair à procura da próxima dose, a fissura e o prazer de livrar-se da fissura, enfim, viver sujeito ao “clima junk”, no qual: “O barato junky é ter de viver sob condições junkies” (BURROUGHS, 2013 [1961]). O PBA mudou as condições e o barato daí proveniente. Deixar de ser na prática, população de rua e craqueiro, para tornar-se um beneficiário, ainda,
usuário de crack é uma grande mudança de condição.
Discutiremos agora, um pouco mais detidamente o trabalho de Grund (1993) sobre usuários de drogas de Roterdã para em seguida tirarmos nossas conclusões a partir de seu modelo. Muitas teorias enfatizam as poderosas propriedades farmacológicas dos psicoativos, ou estruturas de personalidades deficientes. Outras associam drogas com deficiências de desenvolvimento, como pobreza. A ênfase em um dos aspectos farmacológico, psicológico ou social, é errônea para Grund. Enquanto a maior parte das teorias sobre o uso de substâncias são baseadas em internos, em casos clínicos particulares de usuários problemáticos, para o autor, se queremos chegar ao centro disto, nós devemos estudar o fenômeno primordialmente em sua arena natural.
O material foi colhido de um estudo etnográfico de usuários regulares de heroína e cocaína em Roterdã, Países Baixos. Largamente baseado na  observação participante, o estudo de Grund descreve padrões de uso, suas funções, significados e determinantes. Foi fundamental o emprego de um pesquisador de campo nativo, um membro respeitável daquela comunidade que jogou papel decisivo em estabelecer uma aliança de pesquisa entre os mundos tradicionalmente separados da pesquisa e do uso de drogas. O conceito de ritualização foi utilizado. E o maior objetivo da pesquisa foi descobrir as funções e significados do comportamento ritualizado relacionado a drogas. O achado mais importante é que estes comportamentos sociais provêm a infraestrutura para o processo de autorregulação controlador do uso de drogas.
Uma característica proeminente dos rituais e regras é que elas visam controlar ou regular a experiência de uso da droga. Os dados da pesquisa deGrund (1993) fornecem forte apoio à teoria de Zinberg (1984), em que o controle de drogas é amplamente estabelecido por controles sociais – rituais e regras (ou sanções sociais como Zinberg as chamou) que moldam a maneira como a droga é utilizada. Através de processo de aprendizagem social com seus pares, rituaisespecíficos e regras são desenvolvidos como adaptações para os efeitos dasinterações entre droga, personalidade e ambiente.
Contudo, a habilidade para autorregular o uso da droga não se encontra igualmente disseminada por todos os usuários. Alguns usuários, nos estudos de Grund (1993) pareciam ser capazes de usar grandes quantidades de heroína a cocaína sem ou com poucos problemas característicos, enquanto outros – tipicamente os usuários marginalizados ao redor da Estação Central de Roterdã – usavam na verdade muito pouco destas drogas (caras), mas pareciam mais suscetíveis aos problemas (psicológicos) relacionados. Assim, autorregulação ou controle é mais que limitar o consumo de alguém. Refere-se à prevenção e administração dos problemas relacionados a este consumo. E a eficácia de regras e rituais é aparentemente moderada por fatores adicionais. Estes fatores são disponibilidade da droga e estrutura de vida. O estudo de Grund irá tratar da interação entre disponibilidade da droga, rituais e regras, e estrutura de vida, para tentar especificar e detalhar o contexto social no qual os processos auto regulatórios se plasmam.
Disponibilidade da droga, rituais e regras e estrutura de vida são uma tríade – fatores interativos em um processo circular coerente internamente no qual estes fatores são eles mesmos modulados (modificados, corrigidos, reforçados, etc.) por seus resultados. É, portanto um circuito de retroalimentação que determina a força de processos de autorregulação controlando o uso da droga.




O desafio não enfrentado pela internação compulsória é estruturar a vida em um contexto pós cracolândia. Isto não ocorre no PBA, onde a estrutura de vida é construída no processo de adesão e permanência no programa. A disponibilidade da droga, fundamental para a construção de alternativas de vida cotidiana não centrada em esforços constantes para sua aquisição é garantida pelo tráfico a varejo existente no fluxo. Por mais esta razão, a repressão ao varejo do tráfico na Cracolândia nos parece contraproducente. A renda obtida pela participação nas atividades de zeladoria é garantia de sustento do uso. A ditadura do corre, esta verdadeira maratona diária em busca de fundos para o consumo de crack, através muitas vezes de atividades com razoável grau de periculosidade como a prostituição e os pequenos furtos pode ser superada. Em seu lugar vem a remuneração semanal, previsível e suficiente para um uso satisfatório do crack, sob o ponto de vista do usuário. Mesmo este fazendo uso por todo final de semana posterior ao pagamento, ele possui como vimos acima, a expectativa de brevemente ter novamente oportunidade de reiniciar o ciclo de uso, posterior a novo pagamento, ou mesmo de modificá-lo em outra direção. “Não tem nem tempo pra sair pra roubar” como muito bem observou o beneficiário Lucas.
A estrutura de vida em praticamente todos os aspectos levantados por Grund pôde ser trabalhada dentro do PBA. Desde as atividades diárias passando pelas conexões, compromissos, obrigações e responsabilidades, até as condições psicossociais não relacionadas ao consumo de drogas, aos fatores socioeconômicos e culturais. Os dias passaram a ter uma cadência regida pelas três refeições diárias, pelo horário de trabalho de zeladoria pela manhã e pelo sono noturno proporcionado pela acomodação dos beneficiários como hóspedes em hotéis da região. Para alguns, esta carga diária de atividades foi ampliada pela participação em cursos de formação profissional como os disponibilizados na Fábrica Verde (jardinagem), e de informática, cabeleireiro, entre outros em salas alugadas ao lado da sede da OBG, além dos cursos ministrados no bairro do Tatuapé e na empresa Porto Seguro. Isto tudo corresponde a uma gama de obrigações e responsabilidades a estruturar, no sentido de ordenamento do cotidiano, a vida dos usuários de crack.
Responsabilidades quanto a horário, aparência, vestimenta, higiene, manutenção e manuseio de material didático e de trabalho. O amparo proporcionado pelo encaminhamento dos beneficiários à rede CAPS, o a totalidade da Rede de Atenção Psicossocial disponível de modo matricial (MINSTÉRIO DA SAÚDE, 2011) com integração da saúde mental à atenção primária em saúde, como pudemos observar em campo com o CAPS na Rua possui potencialmente a capacidade de oferecer o acompanhamento psicológico aos beneficiários.
A aferição de sua eficácia nas suas demandas psicossociais demandaria maior estadia no campo, mas sabemos da abordagem de questões familiares e de relacionamento entre os pares de usuários em grupos terapêuticos nos equipamentos dedicados à saúde mental, particularmente os dois CAPS responsáveis pela demanda naquele território. Ademais, vimos acima, como Lucas percebe com clareza o momento socioeconômico atual do país, e mais especificamente o de sua classe, na cidade de São Paulo. Não faltam postos de trabalho. Este quadro de plena empregabilidade imprime nos beneficiários mais um ânimo para permanecerem no programa e dedicarem-se aos cursos oferecidos, dada a certeza do emprego no final do processo Hospedagem – Zeladoria/Curso – Trabalho formal. Além, é claro da profunda mudança iniciada pelo PBA sobre a compreensão do uso do crack por parte da sociedade paulistana, por exemplo, ao ver seu prefeito cumprimentando, dialogando, empregando e planejando ações com estes mesmos usuários de crack.
  


Na foto acima, tirada pelo autor deste trabalho em junho de 2014, o prefeito aparece abraçando uma beneficiária e uma agente socioeducativa de Smads. Sobre o aspecto caro a Grund relacionado ao preço e qualidade da pedra de crack, podemos afirmar terem permanecido constantes após o início do PBA, porém, se modificou o contexto de socialização no uso na medida da cada vez maior presença de usuários comprometidos com horários fixos e compromissos, com o uso mais pesado sendo relegado aos finais de semana também devido à proximidade com o pagamento.



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