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23/09/2014

Casa terapêutica no Acre trata dependentes químicos com chá do Santo Daime

Casa terapêutica no Acre trata dependentes químicos com chá do Santo Daime

Método com bebida milenar indígena não tem comprovação científica


POR MARIANA SANCHES (ENVIADA ESPECIAL)
Retirado de: O GLOBO




Caldeirão. Internos preparam o chá de ayahuasca para uso contra dependência química na casa Caminho de Luz: processo é considerado polêmico, mas especialistas vêm vantagens - Regiclay Saady/Freelancer / Regiclay Saady



RIO BRANCO - A mudança na vida de Juliana Arruda, 22 anos, veio em alguns goles de um líquido marrom e espesso:

- Quando tomei o chá pela primeira vez, eu ria, eu chorava. Pensei: “meu Deus, se eu sair dessa, não vou usar mais nada”. É das piores drogas que eu já tomei. Conseguia ver tudo o que eu passei, via uma luz.

Juliana começou a usar crack e cocaína aos 9 anos. Aos 11, ela se prostituía pelas ruas de Rio Branco, a fim de sustentar o vício. Tentou sucessivos tratamentos, mas fugiu de todos. Chegou a morar na rua. Um dia, a mãe de um amigo sugeriu que fosse se tratar em uma casa terapêutica na periferia da capital acriana que adota a planta de propriedades alucinógenas ayahuasca - também conhecida como chá do vegetal ou chá do Santo Daime - para tentar se curar do vício.

- Quando eu soube que (a terapia) era com esse chá do Santo Daime, morri de medo. Não queria tomar, não. Mas foi a melhor coisa que fiz - sustenta.
Na primeira sessão, ela vomitou muito, sentiu calafrios pelo corpo, lembrou-se de inúmeros detalhes de sua vida. Hoje, afirma estar há cinco anos sem usar drogas por causa da terapia.

Tratar a dependência de drogas com outra droga pode parecer um contrassenso. Mas é justamente o que propõe a casa terapêutica Caminho de Luz, onde Juliana se internou. Em meio a mangueiras e castanheiras, em alojamentos de madeira simples e espaçosos, o lugar trata mais de 250 dependentes químicos com doses diárias de ayahuasca. O método, que custa R$ 150 mensais para aqueles que podem pagar, pressupõe reclusão por, no mínimo, nove meses e terapia ocupacional, além do uso cotidiano do chá. Para dar conta da demanda, ali são produzidos cerca de 400 litros da bebida por mês. 

É a única casa de terapia nesses moldes no Brasil. Seus donos dizem que o índice de recuperação dos dependentes ascende a 50%, contra uma média de 20% das clínicas de recuperação convencionais. Não há, porém, estudos que comprovem a eficácia do tratamento.

- O cabra pode ser durão mesmo, mas a gente não precisa dizer nada. Com o vegetal (ayahuasca) ele vai se ver e ver como esteve errado. É um trabalho de conscientização, de expansão da consciência do sujeito, que o chá ajuda a promover. O chá é uma força espiritual, da natureza - afirma Antônio Muniz, corresponsável pelo trabalho.


BEBIDA USADA NA AMAZÔNIA

A ayahuasca é uma bebida milenar utilizada por indígenas da Amazônia no Peru, na Bolívia e no Brasil. No Acre, descendentes de escravos que trabalhavam em seringais difundiram o uso ritualístico do chá no início do século XX. Pelo país há hoje alguns milhares de adeptos do ritual. O chá não provocaria dependência química, segundo especialistas, e suspeita-se que tenha eficácia biológica sobre o cérebro dos dependentes.

- Temos evidências que indicam que há, sim, um efeito para acalmar a síndrome de abstinência - afirma o psiquiatra Luis Tófoli, da Unicamp, que vem conduzindo estudos no tema.
Segundo Tófoli, a planta pode ter um efeito semelhante ao do LSD, comprovadamente uma droga que auxilia, segundo a literatura médica, a combater vícios como o alcoolismo. Mas ressalta que faltam estudos. Segundo ele, o chá não causa dependência.

Mesmo sem comprovação científica do tratamento, há pelo menos três anos o Tribunal de Justiça do Acre tem enviado presos em liberdade condicional ou que devem cumprir penas alternativas para reclusão e tratamento na Caminho da Luz. Atualmente há cerca de 35 detentos ali. Para cada um deles, a casa recebe um repasse do governo federal. É comum ver pessoas com tornozeleiras eletrônicas caminhando entre as mangueiras e castanheiras do espaço.

- O estado não dispõe de clínicas terapêuticas próprias, então encaminhamos os reeducandos (presos) para clínicas particulares. Eles vão se quiserem, o estado permite, é um uso monitorado - afirma a juíza Maha Kouzi Manasfi, da Vara de Execuções de Penas Alternativas do Tribunal de Justiça do Acre. - Sabemos que um dos maiores motivos de descumprimento de penas e de crimes é o uso de drogas. Na minha opinião, a questão da religião é primordial. O fortalecimento espiritual que a Caminho de Luz faz é fundamental para eles vencerem essa batalha.

Desde os anos 2000, o chá foi liberado para uso religioso e ritualístico no Brasil. Mas não há autorização para uso terapêutico. A Caminho de Luz, que agrega a religião à terapia, está num limbo jurídico. O tratamento pode ser considerado irregular, segundo a regulamentação do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad).
Além disso, a instituição acolhe menores dependentes que perderam o contato com a família, o que, em tese, é irregular.

- O que eu posso fazer? Aqui recebo qualquer um que peça ajuda, somos uma instituição religiosa e humana, estamos de braços abertos para as pessoas - afirma Muniz.
Ele diz que, após o tratamento, parte dos antigos pacientes continua seguindo a religião e frequentando a casa:

- Mas outros só voltam a aparecer dez anos depois, bem de saúde, sem nunca mais terem tomado o chá.

ENTORNO SOCIAL AJUDARIA

Para o antropólogo Marcelo Mercante, o chá pode até ajudar na recuperação das pessoas, mas a força do tratamento está na reconstrução de uma comunidade em torno dos dependentes.

- É um fenômeno parecido com o que acontece em uma comunidade terapêutica evangélica ou até em uma comunidade de ateus. O cerne da dependência é a questão social - diz.

O tratamento com ayahuasca tem riscos. Há quatro anos, o assassinato do cartunista Glauco Villa-Boas pelo jovem Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, que sofre de esquizofrenia, trouxe à tona o problema de ministrar o chá para pessoas psicóticas. Nesses casos, a droga pode provocar surtos.

- O chá não é uma panaceia. E não é para qualquer pessoa. O uso pode ter efeitos benéficos, mas ainda não sabemos quais são eles nem, tampouco, o que é efeito biológico da droga e o que é efeito da comunidade religiosa em torno dos pacientes - conclui Luis Tófoli.

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