Oficinas de artesanato, música, poesia e teatro despontam como ferramentas para o tratamento da dependência química.
Fernanda Aranda , iG São Paulo
O polegar usado para atiçar
o isqueiro e acender freneticamente o cachimbo agora tem outra função. As mãos
de Índio, 37 anos, há quatro meses, fazem arte. Transformam lixo em quadros e
murais, em um processo realizado dentro de um ateliê instalado na Cracolândia –
região da capital paulista que acumula, a céu aberto, milhares de pulmões e
cérebros devastados pelo crack.
Com os dedos torturados
pelos 20 anos passados na rua, Índio – que nasceu Cícero Rodrigues e ganhou o
apelido devido aos traços caboclos herdados da avó – usa o artesanato para
driblar a dependência química de forma autodidata, “por instinto”. Mesmo sem
ter consciência disso, ele mira a abstinência usando uma ferramenta terapêutica
que ganhou os consultórios, as clínicas e os centros de saúde espalhados por
todo País.
Psiquiatras, psicólogos e
educadores enxergaram no artesanato, no samba, no rap, no funk e na poesia uma
maneira eficaz de tratar o uso compulsivo de álcool e drogas. Os resultados da
chamada arteterapia para a dependência começam a aparecer catalogados em
pesquisa. Um indicativo de caminho de conduta médica para uma área da saúde
mental que ainda ostenta o índice de 45% de falha na recuperação dos pacientes.
Índio passou a fumar menos
crack quando ingressou na rotina artística. José Benedito Leal, 45 anos, deixou
de esconder as garrafas de cachaça no armário da faculdade onde lecionava após
descobrir-se poeta.
“Nenhuma
gota há cinco anos e milhares de versos produzidos no período”, conta ele, pós-graduado
em Matemática.
Maurício Same, 32, também
abandonou a bebida – responsável por fazer dele um
morador de rua em Praia
Grande (litoral paulista) – depois de ouvir o som que produzia com as cordas do
violão.
“Estou
limpo há um ano. A primeira música inteira que toquei sóbrio foi ‘Tente outra
vez’, do Raul Seixas”, diz.
Oficiais da Marinha de
Salvador foram estimulados a tratar o alcoolismo em cima do palco, brincando de
serem atores de teatro.
“A
arte faz parte da terapia ocupacional, área já consolidada no Brasil como
política de saúde pública. Não há motivo nenhum para excluir os pacientes da
saúde mental destas ferramentas. Ao contrário. Os resultados são excelentes”, afirma o psiquiatra
Leonardo Araújo de Souza, diretor do Instituto Nise da Silveira do Rio de
Janeiro.
“Arte de resgate”
A instituição pública fluminese
dirigida por Leonardo oferece aos 220 pacientes internados oficinas de samba e
percussão. Todo ano, eles colocam na rua o bloco de carnaval. A entidade,
inclusive, foi batizada em homenagem a uma precursora da arte como remédio para
a saúde mental.
Nise (1905-1999), na década
de 1940, descobriu no traço artístico uma arma para substituir os eletrochoques
e o confinamento nos manicômios, formas controversas e torturantes usadas em
depressivos, esquizofrênicos e dependentes químicos da época. Um de seus pacientes
foi Arthur Bispo do Rosário – cujas obras ganharam o mundo e foram tema da
última Bienal de Artes de São Paulo.
No legado de Nise, não
estão apenas descobertas de artistas famosos e anônimos. O psiquiatra Luiz
Guilherme Ferreira Filho acredita que este olhar médico sobre os efeitos da
arte foram fundamentais para implementar os planos de humanizar o tratamento e
promover reinserção social dos pacientes – dois
pilares definidos pelo Ministério da Saúde como fundamentais para vencer o
crack, a cocaína, o alcoolismo e o uso de maconha.
Hoje, de acordo com o
último censo do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas
(Cebrid), 10% da população brasileira (19 milhões de pessoas) necessitam de
intervenção médica para tratar o vício.
Arte é neurociência.
"Por meio da pintura, da música, do artesanato você alcança o inconsciente
do paciente e restabelece o mecanismo de recompensa cerebral, deturpado pela
droga”, diz Ferreira Filho.
“Amplia
o repertório de atuação do paciente. Ele, ainda que não tenha talento, descobre
que há outras formas menos nocivas de ter prazer. Não é arte bela e nem feita
para estar em galerias. É arte de resgate.”
Sarau da abstinência
Foi estudando a reação
cerebral dos dependentes químicos que Ferreira Filho decidiu implantar oficinas
de arte no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) de Praia Grande. Duas vezes
por semana, 40 pacientes em tratamento são convidados a sentar em roda e
mostrar os talentos escondidos ou nunca identificados, por conta do uso de
droga.
´´Eu sou mosca presa na janela. Quero voar sem
incomodar ninguém. Deixar de ser mosquito, que pica, suga e vai embora. Quero
ser mosca. Quero ser livre``. José Benedito.
Em uma dinâmica típica de
sarau, cada um vai ao centro do círculo e canta, declama, pinta um quadro. O
matemático José Benedito descobriu assim a vocação para usar as letras em
versos. No dia em que a oficina foi acompanhada pela reportagem, ele puxou de
improviso o poema “mosca presa na janela”, de sua autoria (leia ao lado).
Maurício criou melodias. Maria do Socorro fez o público chorar ao desafinar,
mas sem sair do ritmo, as estrofes sertanejas de Menino da Porteira. Há dois
meses, a produção do “sarau da abstinência” do Caps virou mostra cultural no
teatro municipal da cidade.
“Aberta ao público. Foi sucesso”, comemora o psiquiatra.
Experiências particulares
Já as técnicas teatrais
voltadas ao alcoolismo, recurso idealizado pela psicóloga Thaís Gold, não
chegaram à nenhuma plateia. Mas o método artístico ingressou na faculdade. Tudo
começou quando Thaís foi convidada a realizar um trabalho com oficiais da
Marinha de Salvador (Bahia) que apresentavam uso nocivo de álcool e drogas.
“Sabia
da resistência que enfrentaria caso elaborasse uma apresentação de Power Point,
com dizeres sobre drogas. Então, tive a ideia de usar Augusto Boal e o teatro
do oprimido (técnica em que os participantes fazem jogos de cena, representando
o cotidiano). Deu tão certo que hoje, na faculdade onde eu leciono, incentivo
meus alunos a usarem o teatro terapêutico”, conta Thaís.
Levy Seya Maeda, 28 anos,
confirma que as experiências artísticas, ainda que particulares, são incentivos
ao primeiro passo na direção da sobriedade. Ele, que dos 14 aos 24 de idade
caminhou por todos os tipos de drogas, foi resgatado quando trocou as pedras de
crack pelas miçangas coloridas.
“Aprendi
a fazer pulseiras, presenteei a família toda. Não tenho talento manual, os
acessórios são bem ‘mais ou menos’ mas o artesanato me colocou no mundo sem ser
clandestino. Tanto que é uma ferramenta que uso bastante na clínica (Novo
Mundo, em Itu – interior paulista) para dependentes químicos, onde hoje
trabalho e da qual virei coordenador.”
Sem mágica
A dependência química é
doença considerada epidemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS). As causas
são múltiplas, passam pela genética e exigem terapia, medicamentos, em alguns
casos internação, resume o psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), Dartiu Xavier.
Neste contexto, não há um
psiquiatra ou psicólogo que defenda a arte como remédio mágico para o uso
compulsivo de drogas. Índio, o artista da Cracolândia paulistana, só pondera
que talvez, “se conhecessem meu
trabalho, as pessoas parassem de ter medo de mim. Elas me olhariam como ser
humano e não monstro”, diz ele, enquanto finaliza o quadro para embelezar as
paredes de algum lugar, “ainda não definido”.