Ibogaína: a droga que cura o vício
Da planta iboga é
extraída a ibogaína, uma substância psicodélica que faz sonhar por 12 horas e é
cada vez mais usada contra a dependência química.
Fausto Salvadori ( Revista Galileu online )
Deitado numa cama,
Wladimir Kosiski, 33 anos, viu, literalmente, sua vida passar como num filme —
e descobriu que era um drama ruim. A abertura até prometia: cenas de sua
infância e adolescência, o casamento, o emprego como vendedor em uma
multinacional em Curitiba (PR), a faculdade, dois filhos... Mas, ao chegar aos
21 anos, o roteiro virava filme B, uma típica história de dependência de
drogas, reprisando todos os clichês do gênero.
O crack, então,
roubava a cena: uma sequência previsível de empregos perdidos, faculdade
abandonada e bens vendidos a preço de banana para pagar o vício. E sua carreira
de vendedor em multinacional acabou enveredando para a vida de aviãozinho do
tráfico em troca de alguns gramas de pedras.
O filme apareceu como uma espécie de sonho acordado durante as 48 horas que
Wladimir passou sob o efeito da ibogaína, uma droga psicodélica, em uma clínica
no Estado de São Paulo (que prefere não divulgar o nome). Durante esse tempo,
ele ficou sonolento, mas plenamente consciente. Viu nítidas as imagens de sua
vida, como se fossem projetadas em uma tela de LCD na parede do quarto, logo
acima do médico que o observava sobre a cama.
Quando o efeito
passou, foi a primeira vez em anos que Wladimir acordou sem a fissura, o desejo
incontrolável pela fumaça do crack que ataca os dependentes. Nem o desejo, nem
as náuseas e nem as dores comuns desse tipo de abstinência apareceram. “Era como se eu nunca tivesse usado droga nenhuma”, diz o hoje
administrador de empresas, que passou pelo tratamento e se livrou da
dependência em 2007.
A substância que ajudou Wladimir é cada vez mais usada em terapias
experimentais contra o vício. De 1962, quando começou a ser testada em
dependentes químicos, até 2006, 3.414 pessoas usaram a ibogaína, obtida a
partir da raiz de um arbusto africano, a iboga, para fins terapêuticos.
Só nos últimos quatro
anos, no entanto, 7 mil pessoas passaram pelas terapias, de acordo com dados
preliminares de um estudo do Dr. Kenneth Alper, da New York School of Medicine,
nos Estados Unidos. O número de tratamentos cresceu tanto que provocou uma
escassez da substância, ainda produzida de maneira artesanal, no mundo.
AVAL DA CIÊNCIA:
Boa parte dos cientistas torce o nariz
diante da ideia de se usar uma fortíssima droga psicodélica para se tratar
dependentes químicos. Porém, o crescimento no número de terapias bem-sucedidas
e o início de novos estudos deram mais credibilidade à prática.
Um deles começou em
julho, conduzido pela Associação Multidisciplinar para Pesquisa de Psicodélicos
(MAPS, na sigla em inglês), de Santa Cruz, na Califórnia. De acordo com a
entidade, trata-se da primeira pesquisa sobre os efeitos de longo prazo da
ibogaína na luta contra o vício.
O levantamento é
feito em cima de usuários de heroína, tratados com a droga por uma clínica do
México, a Pangea Biomedics. O interesse dos pesquisadores surgiu após estudos
que mostram os benefícios da prática. “Há cada vez mais
aceitação por parte da comunidade científica”, afirma Randolph Hencken, diretor de
comunicação da MAPS. Os pacientes da Pangea são, em boa parte, americanos que
cruzam a fronteira para receber um tratamento considerado ilegal nos EUA
(embora a pesquisa seja permitida por lá).
A ibogaína também é
proibida na Dinamarca, na Bélgica, na Suécia e na Suíça. Já no Gabão, é
considerada tesouro nacional. Na África Central, curandeiros usam a raiz em
rituais contra as chamadas “doenças do espírito”.
Um deles, da religião Bouiti no Camarões, faz com que o participante coma uma
grande quantidade de iboga (que pode chegar a 500 g) enquanto um grupo canta,
toca e dança a noite inteira. A cerimônia de três dias pode produzir um coma
induzido — o que é entendido como uma viagem ao mundo dos mortos. O objetivo, dizem,
é receber revelações, curar doenças ou comunicar-se com aqueles que já
morreram. Trabalho da antropóloga paulistana Bia Labate, que estudou a droga,
afirma que “acredita-se que os pigmeus tenham
descoberto a iboga em tempos imemoriáveis”.
A primeira pesquisa brasileira no assunto está prevista para começar no ano que
vem, sob orientação do psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do
Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp). Ainda que os resultados sejam positivos, não há
chance de cápsulas de ibogaína chegarem às farmácias tão cedo. “Sob estrita supervisão médica, a droga poderia se tornar um
medicamento, mas custaria milhões de dólares em estudos e ainda não há
investidores para tanto”, diz Hencken.
Comprimidos feitos
com substância da raiz dos arbustos africanos
O EFEITO:
Ainda não se sabe exatamente como essa substância atua no
combate à dependência, mas dezenas de pesquisas em animais e humanos indicam
que age em dois níveis: tanto na química cerebral como na psicologia do
dependente. Por um lado, a droga estimula a produção do hormônio GDNF, que
promove a regeneração do tecido nervoso e estimula a criação de conexões
neuronais.
Isso permitiria
reparar áreas do cérebro associadas à dependência, além de favorecer a produção
de serotonina e dopamina, neurotransmissores responsáveis pelas sensações de
bem-estar e prazer. Isso explicaria o desaparecimento da fissura relatado pelos
dependentes logo após sair de uma sessão.
Na outra frente, a ibogaína promoveria uma espécie de psicoterapia intensiva ao
fazer o paciente enxergar imagens da própria vida enquanto a mente fica lúcida.
Estas visões não seriam alucinações, como as imagens de uma viagem de LSD. É
como sonhar de olhos abertos, o que ajudaria os dependentes a identificar
fatores que os teriam empurrado para as drogas em determinados momentos da
vida.
Estudos com
eletroencefalogramas feitos pela Universidade de Nova York, nos Estados Unidos,
apontaram que ondas cerebrais de um paciente que tomou ibogaína têm o mesmo
comportamento daquelas de alguém em REM (a fase do sono em que sonhamos). “O sonho renova a mente e, se no sono comum temos apenas
cinco minutos de sonho a cada duas horas, na ibogaína são 12 horas de sonho
intensivo”, aponta o gastroenterologista Bruno Daniel Rasmussen Chaves, que
estuda o tema desde 1994 e participará da pequisa da Unifesp.
RISCOS:
No Brasil,
a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informa que não há
restrições legais à ibogaína, mas seu uso como medicamento não está
regulamentado. Por isso, os tratamentos são considerados experimentais e as
clínicas não fazem propaganda.
A importação é feita
pelos próprios pacientes, que pagam cerca de R$ 5 mil por uma sessão com o
derivado da raiz. Após passar por exames médicos, o dependente ingere as
cápsulas, deita-se em uma cama e deixa sua mente navegar pelos efeitos, que
podem durar até 72 horas. Durante esse tempo, médicos monitoram o paciente.
Vale dizer que a literatura médica registra 12 óbitos associados ao uso de
ibogaína nas últimas quatro décadas, provocados por diminuição na frequência
cardíaca (o equivalente a uma morte a cada 300 usuários).
No entanto, estudos
de Deborah Mash, neurologista da Universidade de Miami, nos Estados Unidos, que
já acompanhou o tratamento de cerca de 500 pacientes, apontam que não há
registro de morte por ingestão de ibogaína em ambiente hospitalar. É preciso
que o paciente chegue “limpo” à sessão. “As mortes
registradas ocorreram em tratamentos de fundo de quintal, em que as pessoas
fizeram uso concomitante de ibogaína e outras substâncias”, afirma Chaves.
NÃO HÁ FÓRMULA MÁGICA:
Estudiosos e pacientes avisam: a droga não é uma poção mágica. Para se livrar
da dependência, Wladimir Kosiski aliou o tratamento à psicoterapia e mudança
drástica de hábitos. Voltou a trabalhar, a estudar e nunca mais pisou no local
onde comprava crack. Não foi isso o que fez o professor Gilberto Luiz Goffi da
Costa, 44 anos, que se tratou com ibogaína pela primeira vez em 2005. Viciado
em drogas desde os 14 anos, Gilberto já acumulava 18 tratamentos fracassados
contra dependência. Volta e meia, dormia nas ruas de Curitiba e praticava
roubos para comprar crack: já havia sido preso cinco vezes. Após usar ibogaína,
achou que estava curado. “Tive uma sensação de
bem-estar, mas é um efeito que se perde depois”, afirma. Estava livre
do desejo, mas continuou a frequentar os mesmos ambientes e amigos com quem
dividia drogas.
Em pouco tempo, foi
dominado novamente pelo crack. “A ibogaína retira a
fissura, mas a pessoa pode continuar a usar droga mesmo sem vontade, como
alguém que estraga um regime por gula, não por fome”, diz Chaves.
Gilberto só conseguiu permanecer “limpo” após a terceira vez que se tratou, em
2008, quando aliou a substância a uma troca completa de atitudes, seguindo o
método dos Narcóticos Anônimos.
Sem consumir drogas
há dois anos, hoje dá aulas de línguas e é consultor no tratamento de outros
dependentes. Ao contrário da viagem pelo mundo dos mortos em uma sessão dos
rituais africanos, a ibogaína ajudou o curitibano, pouco a pouco, a permanecer
no mundo dos vivos.