Elisaldo Carlini: O uso medicinal da maconha
Especialista em psicofarmacologia diz que já está mais do que na hora de reconhecer as qualidades médicas da droga no Brasil
NELDSON MARCOLIN e RICARDO ZORZETTO | Edição 168 - Fevereiro de 2010
O médico Elisaldo Carlini parece ter uma obsessão como especialista em psicofarmacologia, área que ajudou a difundir no Brasil nos anos 1960 depois de uma passagem de quatro anos pelos Estados Unidos, três deles na Universidade Yale. O foco de seu trabalho é procurar entender como a Cannabis sativa – a maconha – age no organismo humano, seu alvo de pesquisa há 50 anos. Herdou esse interesse de José Ribeiro do Valle, seu professor de farmacologia na Escola Paulista de Medicina na década de 1950. Desde então tem trabalhado no sentido de desmitificar o conceito de que a maconha é uma droga maldita, sem utilidade.
Nas décadas de 1970 e 1980 liderou no Brasil um grupo de pesquisa publicando mais de 40 trabalhos em revistas científicas internacionais. Esses resultados, juntamente com as investigações de outros grupos internacionais, possibilitaram o desenvolvimento no exterior de medicamentos à base de Cannabis sativa utilizados atualmente em vários países do mundo para tratamento da náusea e dos vômitos causados pela quimioterapia do câncer, para melhorar a caquexia (enfraquecimento extremo) de doentes com HIV e câncer e para aliviar alguns tipos de dores. Para ele, já está mais do que na hora de reconhecer o uso medicinal da maconha no Brasil.
Em maio deste ano haverá um simpósio internacional em São Paulo especialmente para tratar dessa questão. Carlini vê grande preconceito contra a maconha, mas aposta que se os pesquisadores insistirem na direção correta, com o apoio da ciência, essa aprovação será obtida algum dia. É preciso ressaltar que esse médico de 79 anos é contra o uso dessa e de outras drogas para fins recreativos.
Carlini tem uma atuação social que, por vezes, ofusca o cientista. Ele é o criador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) – um importante fornecedor de informações para a formulação de políticas de educação – e da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime), em 1990. Entre 1995 e 1997 esteve à frente da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, órgão predecessor da atual Anvisa, onde enfrentou a espinhosa missão de combater a corrupção no setor. Com sucesso, diga-se. Atualmente está no sétimo mandato como membro do Expert Advisory Panel on Drug Dependence and Alcohol Problems, da Organização Mundial da Saúde (OMS). Tem seis filhos e cinco netos. Em dezembro, entre uma reunião e outra, Carlini deu a entrevista abaixo.
Qual será a proposta do simpósio internacional sobre maconha, que ocorrerá em maio em São Paulo?
Vamos propor que a maconha seja aceita para uso médico no Brasil. Meu avô se formou médico no fim do século XIX e naquela época já usava um livro de 1888, que guardo até hoje, com a receita da maconha para vários males. Era uma terapêutica corrente no mundo todo, inclusive no Brasil. O simpósio internacional terá o título “Uma agência brasileira da Cannabis medicinal?”. A Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece que a maconha pode ser medicamento – apesar da proibição da Convenção Única de Entorpecentes, de 1961 – desde que os paí-ses oficializem uma agência especial para Cannabis e derivados nos seus ministérios da Saúde. Já há uns 10 países que fazem esse uso: Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Itália, França, Alemanha, Espanha, Suíça, entre outros.
Quando e como o senhor decidiu eleger a maconha como objeto de estudo?
Quando entrei na Escola Paulista de Medicina [a EPM, hoje Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)] em 1952. E como aluno do 2º ano comecei a me interessar pela farmacologia e estagiei com o professor José Ribeiro do Valle. Ele foi o primeiro que fez trabalhos verdadeiramente científicos sobre a Cannabis sativa em animais de laboratório no Brasil.
Quais experimentos?
Ele procurava saber os tipos de reação [comportamental] que os animais apresentam quando submetidos aos efeitos da maconha e queria quantificar a potência dos diferentes tipos dessa planta. Naquela época, a psicologia experimental estava pouco desenvolvida no Brasil. Em 1960 fui para os Estados Unidos com a missão de estudar técnicas mais modernas de neuroquímica e psicologia experimental para introduzir aqui. Foi o que fiz quando retornei, em 1964.
O senhor foi logo depois de acabar a graduação?
Não, me formei em 1957 e trabalhei como assistente voluntário da farmacologia até 1960 com bolsa da Fundação Rockefeller. Foi quando ganhei outra bolsa, mas para ir para os Estados Unidos. Fiquei lá quatro anos e fiz o mestrado na Universidade Yale. Quando voltei não consegui lugar na EPM, apesar dos esforços do Ribeiro do Valle. Fui para a Faculdade de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, que começava a funcionar.
Por que o senhor não foi contratado pela EPM?
Não havia vagas. Em 1964 eu era casado, tinha três filhos. Fiquei dois meses na EPM e fui para a Santa Casa, de onde saí em 1970. Foi lá que comecei a fazer de fato meus estudos sobre maconha com testes comportamentais.
Como o senhor voltou para a EPM?
Quando me avisaram que não queriam mais pesquisa na Santa Casa. Como não queria apenas dar aula, fui para a EPM e falei com o diretor, professor Horácio Kneese de Mello. Perguntei se ele aceitava que fosse para lá e desse um curso que não existia lá naquele tempo, de psicofarmacologia, junto ao curso de farmacologia do Ribeiro do Valle. Ele aceitou e prometeu que assim que abrisse a primeira vaga eu seria efetivado. Dois anos depois isso ocorreu. Entrei como professor-adjunto, depois me tornei titular.
Lá o senhor continuou os estudos sobre a maconha?
Continuei no assunto. Quando estudamos a história da maconha, é fácil ver que na proibição de seu uso médico não há nada de científico, e sim de ideológico. Até o início do século XX a maconha era considerada um excelente medicamento. Ela era importada da França na forma de cigarros que se chamavam Grimaldi. Depois, dos anos 1930 em diante, a maconha virou uma droga maldita. O governo egípcio chegou a dizer que ela era uma droga totalmente destruidora, que mereceria o ódio dos povos civilizados. O Brasil participou da criminalização da maconha por meio de uma mentira levada pelo representante brasileiro na Liga das Nações, antecessora da ONU. Em 1925, a Liga das Nações fez a segunda conferência internacional sobre o ópio com 44 países presentes, entre os quais o Brasil. Era para discutir como controlar o ópio, mas o Egito entrou com o tema maconha. E o representante brasileiro, Pedro Pernambuco Filho, disse que ela era mais perigosa que o ópio no nosso país. Isso era, naturalmente, incorreto. Primeiro porque a maconha é muitíssimo menos perigosa que o ópio; segundo, o ópio nunca foi um problema aqui. O resultado disso é que a Liga das Nações condenou a maconha. Depois que a ONU foi criada houve a primeira Convenção Única de Entorpecentes em 1961, assinada por mais de 200 países colocando a Cannabis numa lista, junto com a heroína, como droga particularmente perigosa. É algo que não tem razão científica nos dias de hoje.
De qualquer forma, é indiscutível que a maconha tem efeitos tóxicos.
Claro que tem, como todos os medicamentos. Não existe nenhum remédio em que a bula diga “Não provoca nenhum tipo de problema”. Isso vale para as plantas. Estamos desenvolvendo o programa Planfavi, Planta e Farmacovigilância, e alertamos também para os perigos dos produtos naturais.
Comparado com o cigarro de nicotina, o cigarro de maconha é pior ou melhor?
Tenho dificuldade em dar uma resposta definitiva. Não há dúvida hoje de que o cigarro normal é cancerígeno. Nós sabemos que a maconha tem também substâncias cancerígenas. A folha da maconha é coberta por uma camada de cera que tem naftaleno, antraceno… Se esfregarmos o sarro da maconha na pele de rato, naqueles que nascem sem pelo, o animal passa a ter câncer depois de 50 semanas da administração. Ocorre que não se usa a maconha da mesma forma que o cigarro, com a mesma intensidade e frequência. Outra diferença é que o cigarro tem um efeito bastante sério para o coração. Já a maconha não tem esse problema. Com relação à parte clínica existem demonstrações, segundo vários autores, o que precisa ser confirmado, que o uso da maconha pode facilitar o aparecimento de câncer em certas pessoas se usada de maneira desbragada. Não conseguimos ainda fazer um estudo epidemiológico suficientemente grande como os realizados com o cigarro, em que centenas de milhares de pessoas já foram entrevistadas. Para isso é preciso acompanhar muita gente que use continuamente a maconha e seja suscetível aos efeitos dela.
O senhor é favorável ao uso da maconha como recreação?
Não sou. Não sou favorável a nenhum uso de droga para “dar barato”, que altere a mente sem a real necessidade disso. Mas sou muito favorável ao uso da morfina, por exemplo, como analgésico. Seria um absurdo total proibir o uso da morfina ou do ópio porque podem produzir dependência forte. O que não posso é difundir o uso recreativo da morfina, mas devo difundir, e muito, o uso da morfina como um agente extremamente poderoso para dar qualidade de vida nos momentos finais de um canceroso que morre urrando de dor, por exemplo. No caso da maconha, há relatos científicos dizendo que a droga é uma substância de primeira linha para tratar certas dores. Não dores comuns, como uma dor de cabeça, de dente ou cólica, mas as miopáticas ou neuropáticas, que envolvem músculos e nervos. A esclerose múltipla, por exemplo, provoca esse tipo de dor. E a maconha tem um efeito muito bom para aliviar essas dores. No entanto, aqui no Brasil não se consegue utilizar esse recurso. Em outros países já há esse uso bastante difundido.
Mesmo nos Estados Unidos, que vêm de um período recente muito conservador?
Lá já existe pelo menos um medicamento. Eles sintetizam o delta-9-tetraidrocanabinol (THC), que é o princípio ativo da maconha, e vendem o composto para o mundo inteiro: Marinol é o nome comercial. Foi inicialmente propagandeado para reduzir a náusea e o vômito induzidos pela quimioterapia do câncer. Foi aprovado pela FDA [Food and Drug Administration, agência norte-americana de controle de alimentos e medicamentos] com uso controlado, como deve ser.
E é possível importar o medicamento no Brasil?
É proibido importar e usar. O interessante é que o uso terapêutico antináusea foi descoberto acidentalmente por jovens da Califórnia que tinham leucemia, o câncer sanguíneo. Eles recebiam o quimioterápico e, aos sábados, saíam para se divertir e fumavam maconha. Os jovens passaram a descrever para seus médicos que não sentiam nem náusea nem vômito quando estavam sob o efeito da droga. Os especialistas começaram a investigar, fizeram trabalhos e demonstraram claramente que havia um efeito antinauseante. Mais tarde estudaram outra consequência do uso da maconha, chamada popularmente de larica, a fome exagerada que o sujeito tem depois de fumar. Dessa vez também comprovaram os efeitos e patentearam o medicamento Marinol para a caquexia, a perda exagerada de peso que ocorre no câncer e na Aids.
É possível fazer chá em vez de fumar?
Não, porque os compostos que estão nas folhas não são solúveis. O delta-9-THC é vendido em cápsulas gelatinosas, dada a sua natureza lipídica. Há também um canabinoide sintético, chamado Nabilone, utilizado no Canadá. E acabou de ser lançado também no Canadá e na Inglaterra uma mistura de duas cepas de maconha. Ambas são de Cannabis sativa. Uma delas produz canabidiol, que é o precursor do delta-9-THC. E outra possui alto teor de delta-9-THC. A firma inglesa GW Pharmaceuticals faz dois extratos dessas plantas. A estratégia é misturar os dois, de maneira a ter uma quantidade adequada do canabidiol e do delta-9-THC. Essa mistura foi lançada com o nome comercial de Sativex dentro de uma bombinha, como as de asma, para usar direto na boca. Cada dose libera 5 miligramas do delta-9-THC.
Qual a indicação?
Dores neuropáticas, náusea e vômito da quimioterapia do câncer, caquexia e esclerose múltipla. O interessante é que quem pela primeira vez mostrou que misturando canabidiol com delta-9-THC em determinadas concentrações se modula melhor o efeito da maconha foi o nosso Departamento de Psicofarmacologia da Unifesp. Daqui se originou o trabalho na Inglaterra. Isso é reconhecido internacionalmente. O canabidiol modula o efeito do delta-9-THC, de tal maneira que o delta-9-THC, na presença do canabidiol, gera menos ansiedade e age por um tempo maior.
Quando vocês demonstraram isso?
São estudos da década de 1970 e 1980 com trabalhos publicados na British Journal of Pharmacology, Journal of Pharmacy and Pharmacology e European Journal of Pharmacology, revistas de alto nível. Mas nunca conseguimos tirar nada de positivo desses trabalhos aqui no Brasil para gerar algum produto. Não é prioridade para o país.
Esses trabalhos só serviram para os outros?
Só para o exterior. Foi a mesma coisa com a Maytenus ilicifolia, a espinheira-santa. Fizemos um trabalho imenso com ela. Mostramos, em animais de laboratório e no homem, que tem um efeito protetor para o estômago. Publicamos muito aqui e no exterior e não conseguimos fazer uma patente. O Japão é que pediu e conseguiu. O que me frustra mais é que no pedido de patente japonês está escrito mais ou menos assim: “… a Maytenus ilicifolia, pertencente à família Celastraceae, é utilizada no folclore brasileiro para o tratamento de úlcera”.
A história se repetiu.
Isso é comum. As tentativas oficiais de fazer a medicina aceitar no Brasil a maconha como medicamento vêm antes da década de 1990. Em 1995, como secretário nacional da Vigilância Sanitária, eu coordenava o registro de medicamentos no país. Falei para o ministro da Saúde, Adib Jatene, que desejava organizar dentro da Vigilância Sanitária uma reunião para discutir se o delta-9-THC poderia ser licenciado como medicamento contra náusea e vômito na quimioterapia do câncer. Ele concordou e falei com o presidente do Conselho Nacional de Entorpecentes, Luiz Mathias Flack, que também aceitou. Os dois abriram a reunião. Mas não conseguimos fazer nada. Os médicos não aceitaram.
Qual a razão dessa resistência? Seria o fato de a maconha ser conhecida como uma porta de entrada para outras drogas?
Mas nós estávamos falando de medicamento, não de recreação. Organizamos outras reuniões, inclusive uma aqui na Unifesp, em 2004, com especialistas do exterior. Essa deu um primeiro resultado positivo. O general Paulo Yog de Miranda Uchôa, da Senad [Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas], estava presente e aceitou que o governo brasileiro deveria solicitar à ONU, por meio do Itamaraty, que a maconha fosse retirada da lista das drogas malditas, dado ter sido o próprio governo brasileiro quem havia colocado a maconha nessa situação. Esse pedido está sendo encaminhado à ONU.
O senhor não é a favor da legalização da maconha de modo geral?
Sou contra a legalização porque acho que o ser humano não precisa usar drogas que apenas poluem corpo e mente com objetivos recreativos. Sou a favor da maconha como medicamento, usado sob controle. A descriminalização já existe no Brasil. Ninguém mais vai preso, nem se faz boletim de ocorrência, se é pego com poucos gramas hoje. A não ser que o policial assim queira.
O senhor fuma?
Maconha não. Fumei cigarro normal durante muito tempo. Parei há mais de 20 anos por um motivo curioso, quando ainda não havia provas cabais dos prejuí-zos do fumo. Eu estava no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, recém-inaugurado. Tudo era muito novo, o carpete, as cadeiras, tudo. Fui pegar um café e deixei o cigarro na ponta do cinzeiro. Quando voltei ele tinha caído e provocado um rombo no carpete novinho. Aquilo me deu uma vergonha enorme. Parei de fumar depois disso e não sinto falta.
O senhor citou a morfina como um medicamento também muito temido pelos médicos.
Na minha época na Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária acreditava-se que apenas 5% dos pacientes com dor severa, que precisavam de morfina para minorar o sofrimento – gente com câncer terminal, queimados graves, politraumatizados –, recebiam a droga. As razões são múltiplas e ocorrem no mundo inteiro. Existe um conceito chamado opiofobia. O médico não prescreve opiáceos, dos quais a morfina é um exemplo, por medo de induzir à dependência. É óbvio que a dependência é horrível, mas não para um doente terminal ou para um politraumatizado. É muito difícil vencer essa fobia dos médicos.
Estamos falando de drogas e ainda não citamos o álcool.
O álcool é uma droga psicotrópica. Produz efeito no sistema nervoso central e gera dependência. Uma droga psicoativa é aquela que age no sistema nervoso, mas não gera dependência porque não tem propriedades reforçadoras. Já a droga psicotrópica age no cérebro, produz seu efeito – analgesia, sono, euforia, alegria, relaxamento – e ao mesmo tempo reforça essas sensações no indivíduo. Ele sente bem-estar ou prazer, que é muito importante para ele. Facilmente a pessoa se torna dependente. Para mim, o álcool é a droga mais terrível que existe no mundo. No Levantamento Domiciliar de 2005, feito pelo Cebrid, foi aplicado nas 108 maiores cidades do país um teste para verificar o risco de haver dependência do álcool. Deu que 12,3% da população entrevistada corre esse risco. É gente demais, corresponde a mais de 20 milhões de brasileiros. No momento, fazemos um trabalho apoiado pela FAPESP para tentar melhorar a adesão dos alcoólatras ao tratamento.
Como é esse projeto?
Começamos conversando com o paciente, procurando entendê-lo. Depois expomos quatro opções terapêuticas, inclusive com um filme ilustrativo. Deixamos que ele vá para casa com um folheto explicativo, pense no que quer fazer, discuta com a família e finalmente diga para nós qual seria o melhor tratamento. Ele é que vai escolher a técnica que julgar mais conveniente. Temos uma expectativa de que o doente, sendo senhor da situação que o envolve, possa aderir mais ao tratamento. Essa é nossa linha atual. O projeto é longo e deve demorar até ter resultados mensuráveis. No momento recrutamos pacientes alcoolistas para participarem da pesquisa. [A adesão pode ser feita pelo telefone (11) 5084-1084, com Valéria.]
Como o senhor vê a política de redução de danos, como distribuição de seringas para viciados?
Acho muito bom. É algo combatido por parte da sociedade porque não se reconhece que dependência é doença. Para algumas pessoas, quem tem de receber seringa é o diabético, e não o “viciado”. O que não se sabe é que o grau de dependência e sofrimento dele é imenso. Ele tem de ser tratado como um doente.
Podemos dizer que os trabalhos dos anos 1960 sobre privação de sono e agressividade de ratos resultaram nas linhas de pesquisa sobre sono e no próprio Instituto do Sono, liderado pelo professor Sérgio Tufik?
O Sérgio foi meu aluno na Faculdade de Medicina da Santa Casa e no doutorado. Os primeiros trabalhos sobre privação de sono paradoxal e maconha nós fizemos juntos. Não há dúvida de que saiu daqui. Ele é de uma inteligência incomum e se encaixa naquele perfil raro de cientista que vê o que todos veem e pensa o que ninguém pensou.
Como nasceu o Cebrid?
Eu queria muito conhecer a situação das drogas no Brasil assim que voltei dos Estados Unidos, mas não conseguia. Já tinha começado um esboço do Cebrid na Santa Casa e percebi que teria de produzir as informações porque havia poucos dados confiáveis. O jeito foi começar a fazer a coleta dos dados para deixá-los disponíveis em um arquivo. Começamos procurando trabalhos sobre abuso de drogas em todas as bibliotecas aqui de São Paulo. Logo no início do trabalho viemos para a Unifesp e montamos um banco de trabalhos de pesquisadores brasileiros que escreveram sobre isso. Hoje são quase 4 mil, todos disponíveis para quem quiser pesquisar. Boa parte dos trabalhos era antiga e achamos que teríamos de produzir outros estudos, mais atuais. Fizemos o primeiro levantamento entre estudantes nas capitais brasileiras e entre meninos de rua em 1987. Repetimos em 1989, 1993, 1997, 2004 e devemos fazer mais um neste ano. Esses dados são utilizados no Brasil como fonte de informações para se elaborarem políticas públicas educacionais.
Existe um grande interesse sobre os possíveis resultados dos estudos sobre plantas medicinais, especialmente pela enorme biodiversidade brasileira. Mas a expectativa de achar moléculas ou princípios ativos que possam virar medicamentos parece muito difícil de concretizar. Por quê?
De fato é difícil seguir apenas por esse caminho. Se analisarmos os medicamentos importados que chegam ao Brasil atualmente, há um número grande que é feito não mais pelo princípio ativo, mas pelo extrato seco da planta. Acredito que cometemos um erro tático de procedimento. Nós sempre corremos atrás do princípio ativo da planta. Mas ela tem dezenas, às vezes centenas de substâncias e temos de pesquisar cada uma delas para saber qual é a responsável pelo efeito que desejamos. Quando se usa um extrato e ele produz o efeito desejado, está ótimo, não é preciso mais pesquisar substância por substância. Há também outra vantagem: esses extratos vêm quase sempre de plantas que foram usadas popularmente por séculos e, provavelmente, não são muito tóxicas. Talvez, de fato, não seja a melhor estratégia utilizar um princípio ativo isolado e único. A pesquisa com algumas plantas está demonstrando que a interação entre componentes é a responsável pelo efeito desejado. Nosso problema é que não há prioridade para esse tipo de pesquisa no Brasil. A começar pelos próprios órgãos do governo, que não acreditam nisso e criam limitações como as impostas pelo CGEN [Conselho de Gestão do Patrimônio Genético], do Ministério do Meio Ambiente. O CGEN sem dúvida tem boas intenções e, como nós, visa proteger nosso patrimônio genético de modo que não caia em outras mãos e também, como nós, pretende conferir direitos àqueles que são na realidade os donos do conhecimento popular. Mas na prática estabeleceu regras tão estapafúrdias que acabou por impedir que o cientista brasileiro trabalhasse com plantas. E há outro problema: trabalho com plantas dá pouco índice de impacto, o que gera pouco interesse de outros pesquisadores e das agências de fomento.
Pesquisa FAPESP nº 70, de 2001, publicou uma reportagem sobre o trabalho da bióloga Eliana Rodrigues, orientado pelo senhor, que havia identificado 164 espécies vegetais usadas pelos índios Krahô com fins medicinais. Os índios cobraram da Unifesp uma indenização de R$ 25 milhões. Como se resolveu a situação?
Não se resolveu. Até hoje a situação é complicada. Somos acusados de ser ladrões da biodiversidade brasileira. Recentemente recebemos uma carta do Ministério Público querendo uma prova de que não publicamos esse trabalho em nenhuma revista do exterior. Na mesma época, centenas de trabalhos de brasileiros foram publicados por diferentes universidades brasileiras no exterior em associação com indústrias estrangeiras e, mais do que isso, há quatro estudos com plantas exclusivas do Brasil feitos apenas por universidades de fora. E nós fomos escolhidos para prestar contas, não sabemos a razão. Para poder pesquisar uma planta brasileira, nós, farmacólogos, temos de provar que não estamos fazendo uma bioprospecção. Bioprospecção, por definição, é qualquer coisa do campo da ciência que pode gerar no futuro um interesse comercial. Ora, farmacologia é o estudo de medicamentos, algo que sempre poderá gerar um produto comercial, mesmo que o pesquisador não queira. Pode ser um remédio, um cosmético, uma tinta qualquer.
Vocês são processados pelos índios?
Não, eles estão a nosso favor. Eles vieram até aqui e ficamos três dias com autoridades públicas. Um dos líderes, que fala melhor o português, nos disse, “que fique bem claro, se a pesquisa não sai é por culpa de vocês brancos, porque nós queremos”. Estamos nessa briga. É o governo contra o governo, porque, afinal, a Unifesp é federal. Nosso projeto já havia sido aprovado pela FAPESP. Fechei questão em um ponto: queria que os índios tivessem direito à patente. Como índio é tutelado pelo Estado e não pode assinar nada, tentei interessar a Funai, mas naquele período mudaram três ou quatro ministros da Justiça e os respectivos presidentes da Funai. A solução foi fazer um contrato “ético” entre a universidade e os índios de modo que eles tivessem assegurados os direitos aos royalties pela própria universidade. Tudo foi assinado – e depois morreu completamente.
Como foi sua passagem pela Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, a atual Anvisa?
A Vigilância Sanitária tinha uma fama medonha de corrupção, conhecida nacionalmente. Quando aceitei o convite do ministro Adib Jatene, a missão era moralizá-la e modernizá-la. Pedi a colaboração dos funcionários para mudar a fama do lugar e acho que fui atendido. Eu recebia muitos presentes, relógios, canetas Mont Blanc, eletrodomésticos e decidi não devolvê-los para não criar novas inimizades. Eu agradecia e mandava a secretária colocar em uma estante específica. Eram dezenas e dezenas de presentes. Depois levava as pessoas que davam os presentes para verem o que era a estante. No final do ano chamava todos os funcionários da Anvisa e fazia um grande sorteio com esses presentes. Também afastei 15 funcionários e “fechei” de 100 a 150 laboratórios fantasmas, todos com registros normais e vários participando de concorrências públicas. Isso dá uma ideia do nível de desacertos do período. Também cancelei mais de 300 registros de farmácias magistrais que faziam as famigeradas fórmulas para emagrecer. Mas adiantou pouco. Saindo o Jatene e eu deixando a Vigilância Sanitária tudo voltou ao que era antes. Felizmente, logo depois um outro ministro da Saúde assumiu, foi criada a Anvisa e nos dias de hoje acredito que aquela negra fase jamais voltará. O interessante é que, depois de tanta luta, ganhei bastante respeitabilidade entre o pessoal da indústria e na própria Vigilância Sanitária.
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