Uma overdose de polêmica tomou conta de São Paulo nos últimos
dias por causa de medidas do programa de incentivo à internação de dependentes
químicos, bancado pelo governo do Estado.
No meio desse caminho, tinha uma pedra: o crack. De um lado,
viu-se o drama dos aprisionados pela droga e dos familiares desesperados por
ajuda. De outro, muita controvérsia em torno da internação forçada - vista ou
como política de saúde pública ou como "limpeza urbana" dos
frequentadores das cracolândias.Diante da complexidade da questão, o Aliás conversou
com dois especialistas: os psiquiatras Dartiu Xavier da Silveira e Ana Cecília
Marques, ambos professores da Unifesp. Eles têm opiniões divergentes e defendem
posições a partir de sua experiência de campo. Em um ponto, porém, concordam:
do jeito que está, a tragédia brasileira do crack não pode mais ficar.
Confira abaixo a entrevista com Dartiu Xavier da Silveira:
Comecemos pela internação compulsória para dependentes de crack: como o sr.
analisa a medida?
O que se destaca
negativamente, a meu ver, é esta medida ser proposta como o principal mote de
uma política pública. Isso não faz sentido do ponto de vista médico. Internação
compulsória deve ser uma situação de exceção, não de regra. Está até prevista
em lei de 2001. Mas o governo paulista a divulgou como política pública nova,
portanto generalizante. Não sou contra a internação compulsória. Sou contra a
ideia da internação compulsória como uma medida generalizada. Tal tratamento
funciona para apenas 2% dos pacientes internados contra a vontade. Já trabalhei
na Europa e nos Estados Unidos com estudos e tratamentos para dependência
química.
No Brasil, fundei o Proad (Programa de Orientação e Atendimento a
Dependentes), o primeiro serviço gratuito para dependentes em São Paulo.
Atualmente atendemos 700 consultas por mês. Desde 1993, lido com dependentes de
crack. E, desde 1996, com populações de rua. Assim, sei que as internações
involuntárias e compulsórias são indicadas para situações muito específicas, em
que o indivíduo apresenta problema mental grave associado, como a psicose com
delírio e alucinação, e o risco de suicídio. Fora isso, não.
O governo paulista diz que a internação compulsória mira só a ‘exceção da
exceção’.
Não tem sentido. Se é para uma pequena
minoria, como pode ser anunciada como mote da ação? O mote deveria ser uma
atenção global, integrada e multidisciplinar ao problema. As populações de rua
são privadas de tudo que se possa imaginar. Muitos indivíduos nunca foram
institucionalizados, nunca tiveram família, nunca tiveram casa.
Tenho uma
história emblemática para lembrar. Uma menina de 13 anos que usava crack me
dizia: "Tio, nem gosto do efeito da droga, não. Mas sabe o que é? Para
poder comer, preciso me prostituir. E, para ter relação sexual com um adulto,
preciso me drogar, senão não suporto a dor". E o que a gente quer fazer?
Quer pegar uma menina dessas e jogar na internação compulsória? O problema
dessa menina é muito maior que a droga. Há uma inversão de valores aí, um
discurso sobre o crack que perverte as reais questões que estão acontecendo na
cracolândia. A repressão deveria ser dirigida ao tráfico internacional, aos
traficantes. E não ao menino de rua que usa crack.
Muitos criticam a ausência do Estado. Mas, agora que o Estado se posiciona,
também é alvo de críticas.
Precisamos da intervenção
do Estado. Mas no papel de agentes de saúde, para propiciar o cuidado
necessário a essas pessoas. Não adianta dizer "vamos resolver a questão
das drogas" e botar policiais na rua, em ações truculentas. Ainda hoje há
uma confusão sobre as diferenças dos aspectos criminais e médicos nas questões
das drogas.
A própria legislação é muito ambígua para discernir quem é o
usuário, quem é o traficante. E, ainda, quem é o usuário ocasional, quem é o
dependente químico. Não é simples. Mas jogam todos na mesma vala. Aliás, nem
todo usuário de crack é dependente. Outra ambiguidade: a confusão entre a
política e a questão médica e psicológica. Agora, se o Estado se autoriza a
propor internações involuntárias e compulsórias a essas populações de rua,
parece-me uma medida política, midiática e higienista. Se o mote fosse realmente
o cuidado do crack - e se a melhor abordagem fosse a internação
involuntária/compulsória -, penso que, por uma questão de coerência, isso
deveria ser estendido à Avenida Paulista, aos bairros mais nobres da cidade.
Por que só na cracolândia? Porque incomoda muito ver as pessoas se drogando na
rua. Se a indicação fosse médica, você também pegaria involuntariamente os mais
favorecidos.
O que incomoda é a visibilidade - não só da droga, mas dessas
pessoas. No consultório onde atendo, recebo pacientes de classe média alta que
consomem crack entre quatro paredes. Médicos, jornalistas, executivos... São
exceções, mas há. Essas pessoas não têm a mesma visibilidade das pessoas de
rua. Quer dizer, temos uma miséria social antes de tudo. A droga é só um elemento.
A internação deve ser uma decisão médica - e, então, como defendê-la como
decisão jurídica? É muito mais cara (e menos eficaz) que o trabalho
ambulatorial que já realizamos.
Por quê?
Por exemplo, há uma iniciativa municipal em
que uma equipe de psiquiatras faz internações involuntárias de pessoas em
situação de rua. Como não tem condições de tocar esse regime de internação em
hospitais públicos, recorre a hospitais particulares. Mesmo nos melhores
modelos, como nos convênios com o Hospital Samaritano com o Said (Serviço de
Atenção Integral ao Dependente), uma internação custa quase R$ 20 mil por mês.
Há um lobby de instituições psiquiátricas, uma máfia branca interessada nesses
recursos. Há muitos interesses escusos. Por isso, muitos médicos defendem a internação
compulsória, pensam nos próprios interesses financeiros.
Mas não seria ingênuo esperar pela internação voluntária desses
dependentes?
Ingênuo? Não. Ingênuo é
não fazer nada e, na hora em que a situação se agrava, recorrer a uma medida de
exceção. Essas populações de rua foram abandonadas pelo Estado. Perderam a
cidadania, a moradia, a saúde. Agora, com essas novas medidas, perderam mais
direitos: a liberdade individual e o direito de ir e vir. Há uma leitura
equivocada nessa história. Pensam que a miséria social é uma decorrência da
droga, o que não é verdade. É decorrência da omissão do Estado.
A droga não é a
causa, é uma das consequências. Então, a cracolândia deve ser tratada como uma
questão de saúde pública, e não de segurança pública. Eu continuo trabalhando
na cracolândia atualmente. Um trabalho de formiguinha, muito difícil e lento.
Abordamos essas pessoas, fazemos intervenções com consultórios de rua, levamos
para atendimento ambulatorial no Caps-AD (Centros de Atenção Psicossocial
Álcool e Drogas, iniciativa municipal).
Nas situações extremas, também
recomendamos internação. Tudo é trabalhado a partir de uma rede assistencial.
Mas, quando o governo entra com uma política intervencionista e ações policiais
como a de janeiro de 2012, todo nosso trabalho é prejudicado. Perdemos a
confiança que demoramos tanto para conquistar entre as populações de rua.
Atitudes agressivas e repressivas só afastam essas pessoas. Então, é um
retrocesso para nós.
Além disso, a psiquiatria cometeu muitos abusos no
passado. Sou psiquiatra, vejo isso todos os dias: hospitais abrigando usuários
de drogas sem nenhuma indicação médica. É um risco grave e sério de
manicomialização do tratamento. Na primeira ação na cracolândia, a de janeiro
de 2012, tive a impressão de que estávamos retornando à era da psiquiatria
medieval. Entramos até num questionamento ético: qual é o direito do Estado de
intervir assim na vida de alguém? É uma afronta às liberdades individuais. Não
se pode fazer um isolamento nos modelos das prisões. E internação compulsória é
isolamento social, não tratamento. É o que vejo na prática. Se tivéssemos um
aparelho constituído e um método eficaz, eu defenderia a iniciativa. Se não é
assim, qual é o sentido? Em São Bernardo do Campo, um dos hospitais conveniados
com o governo do Estado estava sob intervenção e investigação por maus-tratos
aos pacientes. Como se pode propor uma internação involuntária em um hospital
assim? E isso foi no ano passado, não na história distante da luta
antimanicomial.
O dependente de crack é capaz de discernir o que é melhor para ele?
Tenho discutido muito a questão da autonomia com o pessoal da
área jurídica. A perda da capacidade de autodeterminação, que configura uma
situação jurídica que justifica uma internação compulsória, é exceção. A
maioria das pessoas envolvidas com drogas não perdeu essa capacidade de
autodeterminação - isso vale para maconha, crack, álcool, etc. O que define a
dependência é a perda do controle em relação ao produto. Se o indivíduo perde o
controle no consumo de álcool, ele é incapaz de responder pelos próprios atos?
Não. Ele escapará da prisão se cometer um crime? Não. Quer dizer, a perda de
controle vale apenas para aquele ato. Mas dizer que esse indivíduo perdeu a
noção de identidade e o julgamento entre certo e errado? Não. Qual é o limite?
A capacidade de fazer o julgamento da realidade. Perdendo isso, entramos na
psicose. A maioria dos dependentes de crack pode estar consumindo
compulsivamente a droga e pode estar desesperada a ponto de roubar para poder
comprar mais, mas não perdeu a capacidade de diferenciar o certo do errado.
Quer entrar com medidas jurídicas? Sim, mas medidas voltadas para os delitos -
o roubo, por exemplo. E roubo não é doença mental, é crime.
O governador Geraldo Alckmin se disse surpreso com o número de internações nos
primeiros dias, prometendo mais investimentos. Foi realmente surpreendente?
É difícil saber. Mas é até natural um movimento dessa ordem,
pois a repercussão na mídia desperta uma procura maior. E a maioria das pessoas
ainda não entendeu a medida, não tem uma visão crítica sobre as questões
polêmicas, principalmente sobre a baixa eficácia desse modelo de tratamento.
Qual o modelo mais eficaz para tratar dependentes de crack?
O modelo ambulatorial, com equipes multidisciplinares. Sei que é
difícil trabalhar com ele. É muito mais simples "decretar" a
internação. Mesmo nesse modelo ambulatorial, que considero mais sustentável, os
resultados não são fáceis. A maioria das ações ali não tem recursos públicos. A
quantia que o governo apostou nas internações compulsórias (R$ 250 milhões)...
Nunca foi investido nada parecido nas nossas ações. Nos consultórios de rua,
por exemplo, temos ONGs e voluntários, pois não há investimento público
consistente. E considere também que os Caps-AD são iniciativas da Prefeitura
com respaldo do governo federal - e são as formas preconizadas pelo Ministério
da Saúde como a forma privilegiada para tratamento de dependência química. E
embora conte com profissionais muito competentes, o Cratod (Centro de
Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas, iniciativa estadual) tem uma
postura diferente, numa linha do antigo modelo americano, mais restritivo e
repressivo.
O Caps-AD trabalha numa linha mais europeia, que privilegia o
acolhimento. Por exemplo: não temos uma visão apriorística, não dizemos
"vamos acabar com as drogas agora". Mas vamos ouvir essas populações
para descobrir como podemos ajudar. Não é à toa que os Estados Unidos estão
mudando de modelo: eles constataram que a famosa guerra contra as drogas já foi
perdida.
Precisamos pensar em alternativas. Agora, se os Estados Unidos, com os
recursos que têm para investir em saúde, já notaram isso, por que nós ainda
estamos batendo nessa tecla? Devemos priorizar intervenções mais humanizadas.
Precisamos proporcionar acolhimento, não segregacionismo.
A proposta da ‘oferta controlada de drogas’ daria certo no Brasil?
Conheço
algumas experiências de uso controlado - nos Estados Unidos e no Canadá, além
de países europeus como Espanha, Holanda e Suíça. Funciona, mas para uma
parcela específica dos pacientes: usuários crônicos de longa data, que já
tentaram os outros modelos de tratamento, sem sucesso. Na esfera da redução de
danos, são medidas válidas, a partir da seguinte constatação: nos modelos de
tratamento tradicionais ancorados na abstinência, como preconizam Ana Cecília
(Marques) e outros, as melhores taxas de eficácia do mundo não passam de 35%,
40%. Quer dizer, mesmo com os melhores recursos não conseguimos ajudar nem
metade das pessoas.
O que fazer com os 60%, 65% restantes que não mantêm a
abstinência? Eles dizem: olha, o dependente não parou, foi um insucesso terapêutico,
entra na estatística e acabou. Não se faz mais nada. Na minha perspectiva, as
pessoas que não respondem ao tratamento e não ficam abstinentes devem receber
outras estratégias para diminuir danos. As propostas de uso controlado fazem
parte dessas estratégias. No Proad, atendo em média 150, 200 consultas de crack
por mês. Temos uma taxa de sucesso de 1/3, que abandona o crack totalmente. Os
outros 2/3, não. Então, tentamos diminuir a frequência de uso para que o
indivíduo tenha uma qualidade de vida melhor, um desempenho profissional
razoável.
Um paciente me disse certa vez que a maconha o ajudava a diminuir o
uso do crack. A partir disso, fizemos uma experiência controlada com 50
dependentes de crack usando maconha, com controle rigoroso e uma série de
variáveis para ter aferição científica, com acompanhamento detalhado por um
ano. Resultado: 68% abandonaram o crack depois dessa experiência, que foi
relatada no Journal of Psychoactive Drugs, uma revista científica da
Califórnia. Em algumas experiências no exterior, há ainda a possibilidade de os
médicos fornecerem o produto ou prescreverem a droga. Isso começou na
Inglaterra no início do século 20, quando os médicos britânicos foram
autorizados a prescrever heroína para soldados dependentes que voltaram da
guerra mutilados.
É preciso esclarecer que a política de redução de danos não
se opõe à política de abstinência. Elas são complementares, não antagônicas.
Cada caso é um caso. A internação compulsória pressupõe a da abstinência, o que
é louvável. Mas funciona menos. No dia em que for liberado, o dependente terá
uma recaída.
O status de epidemia do crack é real?
Como não temos nem
estrutura de atendimento adequada, não podemos dizer se e quanto aumentou o
consumo de crack. A quantidade de dependentes que me procurava em 1996 e em
2012 é praticamente a mesma. O que há é mais visibilidade.