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13/03/2013

Dartiu na Veja de 1995: As drogas são eternas.


Vale a pena ler a entrevista dada pelo Psiquiatra e Coordenador do Proad, Dr. Dartiu Xavier da Silveira em 1995 a revista Veja. 
Esta reportagem foi retirada e transcrita do acervo digital da Revista VEJA.

AS DROGAS SÃO ETERNAS

Psiquiatra lembra que a humanidade sempre consumiu drogas e diz que é preciso abrir o debate sobre sua legalização.
VEJA, 20 de dezembro de 1995. 
Autora: Flávia Varela
Transcrição: Paulo Roberto Brier D'Auria

Foto: VEJA
Em seus plantões no pronto socorro de psiquiatria do Hospital São Paulo, no início dos anos 80, o recém-formado Dartiu Xavier da Silveira Filho ficava especialmente intrigado com os pacientes viciados em drogas. “Pareciam gente como a gente. Não transpareciam nenhum transtorno mental”, lembra. Conversando com eles, mais interessado em compreender do que em recriminar, o médico começou a tentar entender “qual era a dessa turma”.
Depois de formado e pós-graduado em psiquiatria, Silveira foi fazer especialização em farmacodependências no Centre Medial Marmottan, em Paris. Em 1986, criou o Programa de Orientação e Assistência a dependentes, Proad, ligado à Escola Paulista de medicina da Universidade Federal de São Paulo. O Proad já atendeu cerca de 2200 pacientes e é hoje um dos centros de atendimento a viciados mais conceituados do país. Com quinze anos de experiência no assunto, consultor científico em farmacodependência da Organização Mundial de Saúde, o psiquiatra está cada vez mais seguro de que há muita mitificação em relação às drogas. “Acho  que a droga desperta um fascínio. No usuário, o fascínio é claro. Mas ele também se exerce sobre quem tem medo. Por não entender, as pessoas rejeitam e tratam as drogas como se fossem o grande mal da sociedade. Não são”, conclui.
Silveira declara-se fascinado pela paradoxal questão das drogas, “substâncias capazes de proporcionar tanto êxtases prazerosos incríveis quanto descidas radicais ao fundo do poço existencial”.  Se ele já experimentou? “Essa é uma pergunta proibida”, responde, alegando rigor profissional. Aos 40 anos, casado e pai de três filhos 10, 6 e 5 anos,  diz que pretende tratar o assunto de drogas em casa com conversa e “sem radicalismo”, quando achar que for oportuno ou quando for solicitado. Dias depois de ter lançado o livro “Drogas – Uma compreensão psicodinâmica das farmacodependências”, deu a seguinte entrevista a VEJA:


VEJA:  Por que as drogas provocam tanto medo na sociedade?
SILVEIRA: Porque se confunde uso com dependência. Uso de drogas existiu, sempre vai existir e não é uma coisa nociva.

VEJA: Então qual o perigo das drogas?
SILVEIRA: O problema é a dependência. As pessoas confundem dependência com uso recreativo e ocasional, que não costuma ter problema nenhum. É o mesmo caso do álcool. A maioria das pessoas que usam álcool o faz no contexto recreacional, e a gente nem pensa em chamá-las de alcoólatras. O mesmo é válido para as drogas ilícitas. Nem todo mundo que usa é drogado. Estudos da Associação Psiquiátrica Americana mostram que a grande maioria das pessoas que consomem drogas ilícitas não é nem nunca será dependente.

VEJA: Quantos usuários se viciam em drogas?
SILVEIRA: Os números dependem da droga e variam um pouco de acordo com as pesquisas. Em relação à maconha, mais de 90% não são dependentes. Sobre a cocaína os níveis são mais questionáveis. Entre 60% e 70% usam cocaína apenas no contexto recreacional.

VEJA: Não se deve encarar o usuário de droga como um dependente potencial?
SILVEIRA: Isso é preconceito. Houve uma época em que se dizia que o uso ocasional de maconha não era problemático, mas seria a porta de entrada para as dependências. Esse conceito não se comprova cientificamente. A maioria dos que fumam maconha a usa para se divertir, usa por um tempo limitado e depois abandona.

VEJA: Existe perigo maior em algumas drogas do que em outras?
SILVEIRA: De modo geral, o uso recreacional não é perigoso para nenhuma droga. Mas é lógico que existem diferenças. Por exemplo, a cocaína injetável é mais perigosa do que a aspirada. Não apenas porque seu efeito é mais forte, mas porque quem se dispõe a injetar uma droga na veia pretende um efeito muito maior, quer fugir da realidade, sair de órbita completamente. Essa pessoa é muito mais propensa à dependência. Por esse raciocínio, podemos dizer que o consumo de heroína, crack e cocaína injetável é mais grave que um baseado de maconha.

VEJA: Qual o prejuízo das drogas para a saúde?
SILVEIRA: É bom ter claro que os prejuízos acontecem pela quantidade e frequência, portanto podem alcançar tanto quem é dependente como aquela pessoa que usa muito, mas não pode ser considerada dependente. O uso crônico de cocaína pode levar a problemas graves. Um deles é o infarto precoce, que pode provocar a morte de pacientes jovens. Outro efeito possível são os microinfartos, quando há obstrução de pequenas artérias. Isso pode produzir a perda de funções cognitivas como a inteligência, a capacidade de abstração, a memória e a organização de ideias. A maconha é bem menos agressiva. Em alguns casos, há um quadro de perda de motivação. O álcool é das drogas mais lesivas. Existem até demências provocadas por ele. Podem acontecer hemorragias digestivas, problemas de fígado e disfunções endocrinológicas.

VEJA: O viciado usa droga com objetivo diferente do usuário?
SILVEIRA: O viciado em droga se encontra numa situação vivencial insuportável. Uma situação de que ele não consegue fugir nem enfrentar. Ele só tem uma alternativa, modificar sua percepção da realidade e, assim, deixar de sofrer. Ser depende de droga não é ter o desejo de usar drogas, é não ter a possibilidade de não usá-las.

VEJA:  Por que alguns se tornam dependentes e outros não?
SILVEIRA: Nunca se sabe de antemão quem vai tornar-se dependente. Basicamente, tem a ver com características biológicas, influências sociais e culturais e o perfil psicológico.

VEJA: Existem características psicológicas comuns aos que se tornam viciados?
SILVEIRA: Em geral, o viciado apresenta uma fragilidade do ego. Mede-se isso pelo nível de recursos que a pessoa tem para lidar com suas dificuldades. Há também a dificuldade de simbolização, que corresponde à capacidade de fantasiar. Algumas pessoas precisam de uma droga, de algo químico, para entrar no mundo da fantasia. Quanto ao que leva a essas fragilidades, podemos citar diversos fatores e mesmo enfatizar o papel das famílias problemáticas.

VEJA: A família do dependente tem culpa pelo vício?
SILVEIRA: Não é algo tão linear assim. Mas em alguns casos o drogado é um emergente patológico de uma família disfuncional. É ele que apresenta o problema, mas a família inteira está doente. Diversos drogados têm a história de uma figura paterna ausente, demissionária, pouco participante.  Outros podem ter tido uma mãe ambivalente. Uma mãe que em situações de extrema fragilidade não dá suporte emocional e, quando deveria soltar o filho no mundo, protege-o excessivamente. Mas aqui influem também aspectos socioculturais.

VEJA: Existe uma cultura no Brasil que favorece o contato com a droga?
SILVEIRA:Existe em todo o Ocidente. Isso é facilmente percebido com o cigarro e o álcool. Mas também há uma influência do meio social sobre as drogas ilegais. Para um grupo de adolescentes, o primeiro baseado de maconha é sinal de que o indivíduo já está aceito no grupo. Faz parte dos rituais de iniciação, como a primeira experiência sexual.

VEJA: Se os aspectos psicológicos e ambientais são tão importantes, pode-se afirmar que a dependência não tem a ver com quantidade e frequência do consumo?
SILVEIRA: Não há uma relação obrigatória. É claro que, quanto maior a frequência e a quantidade, maiores as chances de você já estar chegando ao limite da dependência. Se você bebe quando chega de noite em casa para dar uma desbandeirada, ao sair com os amigos, é uma coisa. Se você começa a ter de tomar um trago de manha para ir trabalhar, deixa de ser recreacional. A partir de certo nível, torna-se incompatível uma frequência alta com o uso recreativo.

VEJA: O que causa maior dependência: o efeito psicológico da droga ou químico?
SILVEIRA: Hoje existem remédios com os quais fica facílimo tirar alguém da dependência física. Existem remédios para dependências químicas de álcool, derivados de ópio como a heroína, benzodiazepínicos e barbitúricos. A cocaína e a maconha não causam dependência física, mas o individuo volta a consumir por causa da dependência psicológica. A partir desse dado se percebeu que a dependência psicológica é muito mais importante na manutenção do vicio do que a física. E esta existe para todas as drogas.

VEJA: Como os pais devem lidar com o conhecimento de que o filho usa drogas?
SILVEIRA: É uma questão muito difícil de lidar. O que a gente sabe é que a angustia dos pais não vai resolver o problema nem evitar que o filho use droga. O que eu tento passar par aos pais é que o mais importante não é se o filho usa drogas ou não, mas como está a qualidade de vida global dele.

VEJA: O que deve fazer o pai que encontra um baseado de maconha na mochila do filho?
SILVEIRA: A gravidade de encontrar um baseado é a mesma de o pai perceber que o filho chegou alto, bêbado, de uma festa. A atitude adequada é conversar. Descobrir o que aquilo representa para o filho. Saber se ele está bebendo demais, se precisa do álcool. Se ele não bebe, não consegue encontrar-se com a namorada? São essas informações que vão permitir saber se o uso da droga está ficando problemático.

VEJA: O consumo de álcool por jovens requer que tipo de atenção por parte dos pais?
SILVEIRA: As pesquisas mostram que, quanto mais cedo um adolescente começar a beber, maior a probabilidade de ele vir usar drogas ilegais. Ou seja, se fossemos pensar em porta de entrada, teríamos de falar do álcool e não da maconha. Quanto mais cedo ele começar a beber, também mais cedo ela probabilidade de se tornar alcoólatra.

VEJA: A droga dá prazer ao viciado para sempre?
SILVEIRA: Não, tem data marcada para acabar. É o que a gente chama de fim da lua-de-mel, quando a droga já não consegue mascarar a realidade. Nesse momento, a pessoa em geral procura ajuda. Antes disso o terapeuta não consegue agir. Nenhum terapeuta é tão gratificante para concorrer com a atração e o prazer das drogas. Aliás, isso é algo que poucos admitem. Os profissionais e a sociedade negam a realidade do prazer da droga. A droga vira um bode espiatório de tudo o que é ruim. Na verdade, a droga é algo bom. Se não fosse, seria fácil largar.

VEJA – A reposta para um tratamento de drogado está na farmacologia?
SILVEIRA – Não, embora os avanços nessa área ajudem muito. O problema é quando se atribuem poderes mágicos aos medicamentos. Aliás, a história da medicina está cheia de casos assim. No final do século passado, um laboratório desenvolveu um remédio para tratamento de dependência de ópio.  Essa droga era a morfina. A dependência de morfina tornou-se muito mais grave. No início desse século, outro laboratório lançou uma substância para tratamento dos dependentes de morfina, era a heroína. Ou seja, cada droga que ia ser o remédio ideal causava um problema pior. Por quê? Porque as pessoas estavam reduzindo o fenômeno mais amplo, a farmacodependência, a uma questão meramente biológica.

VEJA- Existe muito modismo em tratamento de drogados ?
SILVEIRA- Existe. Isso é catastrófico. A toda hora se ouve que o que resolve é um remédio e tal. Aí vem alguém e apresenta uma teoria psicológica linda. Você vai ver um fenômeno polimórfico. Cada estratégia de tratamento tem de ser personalizada. Não existem métodos miraculosos.

VEJA – É muito difícil curar um viciado em droga?
SILVEIRA – O índice de sucesso de bons serviços varia entre 30% e 40%. É baixo, o que significa que é difícil.

VEJA- O tratamento de drogados tornou-se uma indústria?
SILVEIRA – É verdade. Muitas pessoas estão vendendo ilusões e ganhando muito dinheiro. Como os traficantes.

VEJA – O senhor não acha hipocrisia liberar o consumo de um alucinógeno como o Santo Daime, com o único argumento de que será apenas em cultos religiosos?
SILVEIRA – Eu acho que o contexto, ou a cultura, em que a droga é consumida tem muito a ver com seu potencial de causar dependência. Estudos mostram que em regiões vinículas da Europa os índices de alcoolismo são o mais baixos. A criança nesses lugares, apesar de ter mais acesso ao álcool, tem a cultura de seu consumo introjetada aos poucos. Ela aprende quando beber, quanto beber, como e com quem. Isso a protege do alcoolismo. 

VEJA – Pode-se transportar esse mesmo raciocínio para argumentar a favor da legalização das drogas?
SILVEIRA – Seria o passo seguinte. Algo que a gente vai ser obrigado a pensar. Por exemplo, vemos que, apesar de ser ilícita, existe uma cultura do consumo da maconha. Muitos jovens sabem quando usar, quando não, como fazer, quando é ruim, cuidados a ser tomados. Estão mais protegidos da dependência.

VEJA – A legalização das drogas não levaria a um consumo maior?
SILVEIRA- O que se supõe é que a legalização aumentaria numero de usuários recreativos, mas não alteraria tanto o de dependentes. Quanto à liberação geral, um estudo inglês de Liverpool demonstrou que ela é tão negativa quanto à repressão excessiva. A situação ideal seria a de uso controlado.

VEJA – Como se consegue isso?
Silveira – É apenas uma legalização que funcione. Não uma liberação. O álcool, por exemplo,não é liberado, é legalizado. Existem várias normas que regem a produção, a venda e o consumo. Não se pode vender para menores, não se pode dirigir embriagado e etc. Isso funcionaria, se fosse cumprido.

VEJA – Então, o senhor é a favor da legalização?
SILVEIRA – Eu sou a favor de que se discuta a legalização. Em tese, ela é algo muito plausível. O complicado é a prática da legalização num país como o Brasil. Se o dependente pudesse buscar a droga no hospital onde se trata, não teria de se colocar em situações de risco. Esse é um grande passo da legalização. Mas, se isso acontecesse no Brasil, provavelmente haveria tráfico no hospital. Nós não respeitamos nem a lei do álcool. Mande um menino comprar álcool na esquina. Ele volta com quantas garrafas de cachaça quiser.

VEJA – O que a legalização resolve?
SILVEIRA – Protegeria os viciados de outras complicações. A droga não é proibida porque é perigosa. Ao contrário, ela se tornamais perigosa por ser proibida. A legalização mexe profundamente com os problemas de tráfico de drogas, armas, esse tipo de violência que gira em torno da droga.

VEJA – Uma atitude mais condescendente da sociedade em relação às drogas não facilitaria ainda mais a violência e a criminalidade do mundo das drogas?
SILVEIRA – É uma faca de dois gumes. Mas a função da legalização não é banalizar o uso, e sim tirar falsos mitos. O mesmo estudo de Liverpool mostrou que uma postura governamental mais tolerante, facilitando o acesso, além de não alterar o número de dependentes e diminuir a infecção por HIV, também provoca uma queda brutal nos índices de criminalidade.

VEJA – Legalizar só uma droga, por exemplo, a maconha, que se dizer mais leve, faz algum sentido?
SILVEIRA – Claro. Ao pensar em legalizar, não se é obrigado a legalizar tudo. Quando falamos de maconha, em que o contingente grande de usuários é recreativo, eu acho que estamos diante de uma questão urgente. Deveríamos ter pensado ontem sobre descriminalização, para agora abrir o debate sobre legalização.

VEJA – Por que cerca de 90% da população é contra a legalização?
SILVEIRA – A maioria, acho, por preconceito. Se tivessem informações, talvez não fossem. A imprensa às vezes diz “Fumou maconha e matou a família”. A droga passa a ser associada subliminarmente à violência. Os estudos científicos têm demonstrado que os atos de violência estão muito mais relacionados ao uso de álcool do que ao de drogas ilícitas.

VEJA – A droga incita a violência?

SILVEIRA- Não. A droga libera o que já existe. Se você for violento, será violento. A ideia de relacionar crimes com drogas é preconceituosa. Seria como dizer que alguém se tornou assassino por ser homossexual, negro ou judeu.

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