Vale a pena ler a entrevista dada pelo Psiquiatra e Coordenador do Proad, Dr. Dartiu Xavier da Silveira em 1995 a revista Veja.
Esta reportagem foi retirada e transcrita do acervo digital da Revista VEJA.
AS DROGAS SÃO ETERNAS
VEJA, 20 de dezembro de 1995.
Autora: Flávia Varela
Transcrição: Paulo Roberto Brier D'Auria
Foto: VEJA
Em seus plantões no pronto socorro de
psiquiatria do Hospital São Paulo, no início dos anos 80, o recém-formado
Dartiu Xavier da Silveira Filho ficava especialmente intrigado com os pacientes
viciados em drogas. “Pareciam gente como a gente. Não transpareciam nenhum
transtorno mental”, lembra. Conversando com eles, mais interessado em
compreender do que em recriminar, o médico começou a tentar entender “qual era
a dessa turma”.
Depois de formado e pós-graduado em
psiquiatria, Silveira foi fazer especialização em farmacodependências no Centre
Medial Marmottan, em Paris. Em 1986, criou o Programa de Orientação e Assistência
a dependentes, Proad, ligado à Escola Paulista de medicina da Universidade
Federal de São Paulo. O Proad já atendeu cerca de 2200 pacientes e é hoje um
dos centros de atendimento a viciados mais conceituados do país. Com quinze
anos de experiência no assunto, consultor científico em farmacodependência da
Organização Mundial de Saúde, o psiquiatra está cada vez mais seguro de que há
muita mitificação em relação às drogas. “Acho
que a droga desperta um fascínio. No usuário, o fascínio é claro. Mas
ele também se exerce sobre quem tem medo. Por não entender, as pessoas rejeitam
e tratam as drogas como se fossem o grande mal da sociedade. Não são”, conclui.
Silveira declara-se fascinado pela
paradoxal questão das drogas, “substâncias capazes de proporcionar tanto
êxtases prazerosos incríveis quanto descidas radicais ao fundo do poço
existencial”. Se ele já experimentou? “Essa
é uma pergunta proibida”, responde, alegando rigor profissional. Aos 40 anos,
casado e pai de três filhos 10, 6 e 5 anos,
diz que pretende tratar o assunto de drogas em casa com conversa e “sem
radicalismo”, quando achar que for oportuno ou quando for solicitado. Dias
depois de ter lançado o livro “Drogas – Uma compreensão psicodinâmica das
farmacodependências”, deu a seguinte entrevista a VEJA:
VEJA: Por que as drogas provocam tanto medo na sociedade?
SILVEIRA: Porque se confunde uso com dependência. Uso de drogas existiu,
sempre vai existir e não é uma coisa nociva.
VEJA: Então qual o perigo das drogas?
SILVEIRA: O problema é a dependência. As pessoas confundem dependência
com uso recreativo e ocasional, que não costuma ter problema nenhum. É o mesmo
caso do álcool. A maioria das pessoas que usam álcool o faz no contexto
recreacional, e a gente nem pensa em chamá-las de alcoólatras. O mesmo é válido
para as drogas ilícitas. Nem todo mundo que usa é drogado. Estudos da
Associação Psiquiátrica Americana mostram que a grande maioria das pessoas que
consomem drogas ilícitas não é nem nunca será dependente.
VEJA: Quantos usuários se viciam em drogas?
SILVEIRA: Os números dependem da droga e variam um pouco de acordo com
as pesquisas. Em relação à maconha, mais de 90% não são dependentes. Sobre a
cocaína os níveis são mais questionáveis. Entre 60% e 70% usam cocaína apenas
no contexto recreacional.
VEJA: Não se deve encarar o usuário de droga como um dependente
potencial?
SILVEIRA: Isso é preconceito. Houve uma época em que se dizia que o uso
ocasional de maconha não era problemático, mas seria a porta de entrada para as
dependências. Esse conceito não se comprova cientificamente. A maioria dos que
fumam maconha a usa para se divertir, usa por um tempo limitado e depois
abandona.
VEJA: Existe perigo maior em algumas drogas do que em outras?
SILVEIRA: De modo geral, o uso recreacional não é perigoso para nenhuma
droga. Mas é lógico que existem diferenças. Por exemplo, a cocaína injetável é
mais perigosa do que a aspirada. Não apenas porque seu efeito é mais forte, mas
porque quem se dispõe a injetar uma droga na veia pretende um efeito muito
maior, quer fugir da realidade, sair de órbita completamente. Essa pessoa é
muito mais propensa à dependência. Por esse raciocínio, podemos dizer que o
consumo de heroína, crack e cocaína injetável é mais grave que um baseado de
maconha.
VEJA: Qual o prejuízo das drogas para a saúde?
SILVEIRA: É bom ter claro que os prejuízos acontecem pela quantidade e
frequência, portanto podem alcançar tanto quem é dependente como aquela pessoa
que usa muito, mas não pode ser considerada dependente. O uso crônico de
cocaína pode levar a problemas graves. Um deles é o infarto precoce, que pode
provocar a morte de pacientes jovens. Outro efeito possível são os
microinfartos, quando há obstrução de pequenas artérias. Isso pode produzir a
perda de funções cognitivas como a inteligência, a capacidade de abstração, a
memória e a organização de ideias. A maconha é bem menos agressiva. Em alguns
casos, há um quadro de perda de motivação. O álcool é das drogas mais lesivas.
Existem até demências provocadas por ele. Podem acontecer hemorragias
digestivas, problemas de fígado e disfunções endocrinológicas.
VEJA: O viciado usa droga com objetivo diferente do usuário?
SILVEIRA: O viciado em droga se encontra numa situação vivencial insuportável.
Uma situação de que ele não consegue fugir nem enfrentar. Ele só tem uma
alternativa, modificar sua percepção da realidade e, assim, deixar de sofrer.
Ser depende de droga não é ter o desejo de usar drogas, é não ter a
possibilidade de não usá-las.
VEJA: Por que alguns se tornam dependentes e outros não?
SILVEIRA: Nunca se sabe de antemão quem vai tornar-se dependente.
Basicamente, tem a ver com características biológicas, influências sociais e
culturais e o perfil psicológico.
VEJA: Existem características psicológicas comuns aos que se tornam
viciados?
SILVEIRA: Em geral, o viciado apresenta uma fragilidade do ego. Mede-se
isso pelo nível de recursos que a pessoa tem para lidar com suas dificuldades.
Há também a dificuldade de simbolização, que corresponde à capacidade de
fantasiar. Algumas pessoas precisam de uma droga, de algo químico, para entrar
no mundo da fantasia. Quanto ao que leva a essas fragilidades, podemos citar
diversos fatores e mesmo enfatizar o papel das famílias problemáticas.
VEJA: A família do dependente tem culpa pelo vício?
SILVEIRA: Não é algo tão linear assim. Mas em alguns casos o drogado é
um emergente patológico de uma família disfuncional. É ele que apresenta o
problema, mas a família inteira está doente. Diversos drogados têm a história
de uma figura paterna ausente, demissionária, pouco participante. Outros
podem ter tido uma mãe ambivalente. Uma mãe que em situações de extrema
fragilidade não dá suporte emocional e, quando deveria soltar o filho no mundo,
protege-o excessivamente. Mas aqui influem também aspectos socioculturais.
VEJA: Existe uma cultura no Brasil que favorece o contato com a droga?
SILVEIRA:Existe em todo o Ocidente. Isso é facilmente percebido com o
cigarro e o álcool. Mas também há uma influência do meio social sobre as drogas
ilegais. Para um grupo de adolescentes, o primeiro baseado de maconha é sinal
de que o indivíduo já está aceito no grupo. Faz parte dos rituais de iniciação,
como a primeira experiência sexual.
VEJA: Se os aspectos psicológicos e ambientais são tão importantes,
pode-se afirmar que a dependência não tem a ver com quantidade e frequência do
consumo?
SILVEIRA: Não há uma relação obrigatória. É claro que, quanto maior a
frequência e a quantidade, maiores as chances de você já estar chegando ao
limite da dependência. Se você bebe quando chega de noite em casa para dar uma
desbandeirada, ao sair com os amigos, é uma coisa. Se você começa a ter de
tomar um trago de manha para ir trabalhar, deixa de ser recreacional. A partir
de certo nível, torna-se incompatível uma frequência alta com o uso recreativo.
VEJA: O que causa maior dependência: o efeito psicológico da droga ou
químico?
SILVEIRA: Hoje existem remédios com os quais fica facílimo tirar alguém
da dependência física. Existem remédios para dependências químicas de álcool,
derivados de ópio como a heroína, benzodiazepínicos e barbitúricos. A cocaína e
a maconha não causam dependência física, mas o individuo volta a consumir por
causa da dependência psicológica. A partir desse dado se percebeu que a
dependência psicológica é muito mais importante na manutenção do vicio do que a
física. E esta existe para todas as drogas.
VEJA: Como os pais devem lidar com o conhecimento de que o filho usa
drogas?
SILVEIRA: É uma questão muito difícil de lidar. O que a gente sabe é que
a angustia dos pais não vai resolver o problema nem evitar que o filho use
droga. O que eu tento passar par aos pais é que o mais importante não é se o
filho usa drogas ou não, mas como está a qualidade de vida global dele.
VEJA: O que deve fazer o pai que encontra um baseado de maconha na
mochila do filho?
SILVEIRA: A gravidade de encontrar um baseado é a mesma de o pai
perceber que o filho chegou alto, bêbado, de uma festa. A atitude adequada é
conversar. Descobrir o que aquilo representa para o filho. Saber se ele está
bebendo demais, se precisa do álcool. Se ele não bebe, não consegue
encontrar-se com a namorada? São essas informações que vão permitir saber se o
uso da droga está ficando problemático.
VEJA: O consumo de álcool por jovens requer que tipo de atenção por
parte dos pais?
SILVEIRA: As pesquisas mostram que, quanto mais cedo um adolescente
começar a beber, maior a probabilidade de ele vir usar drogas ilegais. Ou seja,
se fossemos pensar em porta de entrada, teríamos de falar do álcool e não da
maconha. Quanto mais cedo ele começar a beber, também mais cedo ela
probabilidade de se tornar alcoólatra.
VEJA: A droga dá prazer ao viciado para sempre?
SILVEIRA: Não, tem data marcada para acabar. É o que a gente chama de
fim da lua-de-mel, quando a droga já não consegue mascarar a realidade. Nesse
momento, a pessoa em geral procura ajuda. Antes disso o terapeuta não consegue
agir. Nenhum terapeuta é tão gratificante para concorrer com a atração e o
prazer das drogas. Aliás, isso é algo que poucos admitem. Os profissionais e a
sociedade negam a realidade do prazer da droga. A droga vira um bode espiatório
de tudo o que é ruim. Na verdade, a droga é algo bom. Se não fosse, seria fácil
largar.
VEJA – A reposta para um tratamento de drogado está na farmacologia?
SILVEIRA – Não, embora os avanços nessa área ajudem
muito. O problema é quando se atribuem poderes mágicos aos medicamentos. Aliás,
a história da medicina está cheia de casos assim. No final do século passado,
um laboratório desenvolveu um remédio para tratamento de dependência de
ópio. Essa droga era a morfina. A dependência de morfina tornou-se muito
mais grave. No início desse século, outro laboratório lançou uma substância
para tratamento dos dependentes de morfina, era a heroína. Ou seja, cada droga
que ia ser o remédio ideal causava um problema pior. Por quê? Porque as
pessoas estavam reduzindo o fenômeno mais amplo, a farmacodependência, a uma
questão meramente biológica.
VEJA- Existe muito modismo em tratamento de
drogados ?
SILVEIRA- Existe. Isso é catastrófico. A toda hora
se ouve que o que resolve é um remédio e tal. Aí vem alguém e apresenta uma
teoria psicológica linda. Você vai ver um fenômeno polimórfico. Cada estratégia
de tratamento tem de ser personalizada. Não existem métodos miraculosos.
VEJA – É muito difícil curar um viciado em droga?
SILVEIRA – O índice de sucesso de bons serviços
varia entre 30% e 40%. É baixo, o que significa que é difícil.
VEJA- O tratamento de drogados tornou-se uma
indústria?
SILVEIRA – É verdade. Muitas pessoas estão vendendo
ilusões e ganhando muito dinheiro. Como os traficantes.
VEJA – O senhor não acha hipocrisia liberar o consumo de um alucinógeno como o Santo Daime, com o único argumento de que será apenas em cultos religiosos?
SILVEIRA – Eu acho que o contexto, ou a cultura, em
que a droga é consumida tem muito a ver com seu potencial de causar
dependência. Estudos mostram que em regiões vinículas da Europa os índices de
alcoolismo são o mais baixos. A criança nesses lugares, apesar de ter mais
acesso ao álcool, tem a cultura de seu consumo introjetada aos poucos. Ela
aprende quando beber, quanto beber, como e com quem. Isso a protege do
alcoolismo.
VEJA – Pode-se transportar esse mesmo raciocínio
para argumentar a favor da legalização das drogas?
SILVEIRA – Seria o passo seguinte. Algo que a gente
vai ser obrigado a pensar. Por exemplo, vemos que, apesar de ser ilícita,
existe uma cultura do consumo da maconha. Muitos jovens sabem quando usar,
quando não, como fazer, quando é ruim, cuidados a ser tomados. Estão mais
protegidos da dependência.
VEJA – A legalização das drogas não levaria a um
consumo maior?
SILVEIRA- O que se supõe é que a legalização
aumentaria numero de usuários recreativos, mas não alteraria tanto o de dependentes.
Quanto à liberação geral, um estudo inglês de Liverpool demonstrou que ela é
tão negativa quanto à repressão excessiva. A situação ideal seria a de uso
controlado.
VEJA – Como se consegue isso?
Silveira – É apenas uma legalização que funcione.
Não uma liberação. O álcool, por exemplo,não é liberado, é legalizado. Existem
várias normas que regem a produção, a venda e o consumo. Não se pode vender
para menores, não se pode dirigir embriagado e etc. Isso funcionaria, se fosse
cumprido.
VEJA – Então, o senhor é a favor da legalização?
SILVEIRA – Eu sou a favor de que se discuta a
legalização. Em tese, ela é algo muito plausível. O complicado é a prática da
legalização num país como o Brasil. Se o dependente pudesse buscar a droga no
hospital onde se trata, não teria de se colocar em situações de risco. Esse é
um grande passo da legalização. Mas, se isso acontecesse no Brasil,
provavelmente haveria tráfico no hospital. Nós não respeitamos nem a lei do
álcool. Mande um menino comprar álcool na esquina. Ele volta com quantas
garrafas de cachaça quiser.
VEJA – O que a legalização resolve?
SILVEIRA – Protegeria os viciados de outras
complicações. A droga não é proibida porque é perigosa. Ao contrário, ela se
tornamais perigosa por ser proibida. A legalização mexe profundamente com os
problemas de tráfico de drogas, armas, esse tipo de violência que gira em torno
da droga.
VEJA – Uma atitude mais condescendente da sociedade
em relação às drogas não facilitaria ainda mais a violência e a criminalidade
do mundo das drogas?
SILVEIRA – É uma faca de dois gumes. Mas a função
da legalização não é banalizar o uso, e sim tirar falsos mitos. O mesmo estudo
de Liverpool mostrou que uma postura governamental mais tolerante, facilitando
o acesso, além de não alterar o número de dependentes e diminuir a infecção por
HIV, também provoca uma queda brutal nos índices de criminalidade.
VEJA – Legalizar só uma droga, por exemplo, a
maconha, que se dizer mais leve, faz algum sentido?
SILVEIRA – Claro. Ao pensar em legalizar, não se é
obrigado a legalizar tudo. Quando falamos de maconha, em que o contingente
grande de usuários é recreativo, eu acho que estamos diante de uma questão
urgente. Deveríamos ter pensado ontem sobre descriminalização, para agora abrir
o debate sobre legalização.
VEJA – Por que cerca de 90% da população é contra a
legalização?
SILVEIRA – A maioria, acho, por preconceito. Se
tivessem informações, talvez não fossem. A imprensa às vezes diz “Fumou maconha
e matou a família”. A droga passa a ser associada subliminarmente à violência.
Os estudos científicos têm demonstrado que os atos de violência estão muito
mais relacionados ao uso de álcool do que ao de drogas ilícitas.
VEJA – A droga incita a violência?
SILVEIRA- Não. A droga libera o que já existe. Se
você for violento, será violento. A ideia de relacionar crimes com drogas é
preconceituosa. Seria como dizer que alguém se tornou assassino por ser homossexual, negro ou judeu.