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22/09/2013

De palhaço, médico combate o crack

De palhaço, médico combate o crack

Psiquiatra usa fantasia para se aproximar dos usuários e convencê-los a buscar tratamento

BRUNO PAES MANSO - O Estado de S.Paulo
O sol começava a sair de trás das nuvens, por volta das 10h de anteontem, quando o psiquiatra Flavio Falcone, de 33 anos, formado pela Universidade de São Paulo (USP), abriu a porta do banheiro da Unidade De Braços Abertos, na Rua Helvetia, no coração da Cracolândia, centro de São Paulo. Com um nariz de bola vermelha e o rosto maquiado, usando uma cartola branca, terno de tecido grosso e uma gravata feita com gaze, ele já havia incorporado o palhaço Fanfarrone.
Médico se aproxima dos usuários - Felipe Rau/Estadão
Felipe Rau/Estadão
Médico se aproxima dos usuários
Pela décima vez nos últimos dois meses, Falcone repetia o ritual das últimas sextas-feiras. Fantasiado, aborda os usuários de crack nas ruas lotadas da Cracolândia para ganhar a confiança deles e convencê-los a iniciar um tratamento que possa livrá-los de uma das drogas mais consumidas no País. Um em cada três (35%) consumidores de drogas ilícitas nas capitais do País usa crack, conforme pesquisa inédita da Fundação Oswaldo Cruz, divulgada na quinta-feira.
As vestimentas do médico são inspiradas em Zé Pelintra, entidade da umbanda que, segundo uma versão sobre sua morte, bebia demais e foi atropelado depois de adormecer na linha de trem. "O palhaço ajuda a estabelecer uma relação horizontal, de igual para igual, com o povo daqui. De médico, imediatamente se cria uma hierarquia que eu prefiro desconstruir", diz. Depois dos primeiros passeios, um pandeiro também passou a fazer parte dos acessórios da peregrinação. Quando os usuários viam o palhaço, muitos o rodeavam e começavam a cantar com ele.
Logo nos primeiros passos, Fanfarrone é abordado por uma mulher de cerca de 30 anos, magra, cabelos castanhos, envelhecida pela droga, que vem conversar sobre astrologia. Ela pergunta o signo do palhaço, que responde ser de escorpião. A moça conta a história do marido do mesmo signo, que consome crack com ela. "Eu fumo para ficar na brisa, para ouvir música, para fazer amor. Ele fuma e fica violento, fala bobagens, me bate. Quando escorpião dá para ser ruim, sai de baixo", diz a moça.
Uma liderança da cena local começa a acompanhar Fanfarrone, depois de comunicada de que haveria fotos e que o repórter iria junto. Pardal, de 50 anos, foi com um chapéu verde-amarelo, segurando um acessório de penas coloridas. Usa óculos sem lentes para "passar uma imagem de respeito", que ele tira durante os bate-bocas com outros frequentadores.
Pardal estava agitado na manhã de sexta, sob o efeito da pedra. Contou que a Escola de Samba Tom Maior havia sido criada em sua casa, na zona sul, e depois se emocionou ao falar do filho que foi preso aos 15 anos e só agora havia saído da prisão. Assumiu com o palhaço o compromisso de participar de um grupo de música para o bairro, projeto ainda a ser apresentado ao poder público.
Fanfarrone segue pela Helvetia em direção à Rua Dino Bueno, onde fica "o fluxo", termo usado para definir o movimento de venda e consumo intenso da pedra. Ganha um boneco de pelúcia de presente de uma moça, que pede que ele guarde o bichinho com cuidado. Metros adiante, Fanfarrone perde o boneco, levado de seu bolso por um homem.
A rua está agitada às 10h30. Barraquinhas de roupas velhas ficam na calçada, num comércio de objetos sem valor para fazer dinheiro para manter o consumo da pedra. Em outro, são vendidos carrinhos de plástico quebrados e muitos restos de equipamentos eletrônicos. Um jovem branco, de cabelos claros e compridos, tenta vender uma bela jaqueta preta, no meio do fluxo, para obter recursos e comprar mais pedra.
Fanfarrone segue decidido, passando em meio à multidão efervescente. Para a reportagem, ele diz que a escolha do palhaço não foi gratuita. "O palhaço, na verdade, deu sentido para minha vida. Aqui, eu também busco a minha cura", conta. Criado em Piracicaba, no interior de São Paulo, ele sempre foi uma criança tímida. Seus pais eram donos de uma escola de balé. Desde os 4 anos, ele assistia, discretamente, a quase todas as aulas. Depois, repetia as coreografias escondido.
Sonho. Aos 14 anos, sonhou que estava tratando de dependentes químicos. Foi quando decidiu ser psiquiatra. Sempre teve facilidade com os estudos e ingressou na USP. Junto com a Medicina, passou a fazer aulas de palhaço e conseguiu se livrar da depressão que o perseguia. "O palhaço lida com as sombras. Ele revela o lado ridículo de situações que, às vezes, levamos muito a sério. Eu sempre fui uma pessoa tímida. Passei a rir de mim mesmo, o que foi mais eficiente do que qualquer terapia. Parece que, hoje, renasci e vivo em outra encarnação", diz.
A sombra dos frequentadores da Cracolândia, para o palhaço, é o potencial muitas vezes desperdiçado daquelas pessoas. Fanfarrone continua andando no meio da confusão, com gente de olhos arregalados por todos os lados, cachimbos de aço sendo acesos, discussões e dedos em riste, quando, de repente, um cego de roupa social aparece, tentando passar no meio do fluxo com a ajuda da bengala. Tudo pode parecer muito triste, mas Fanfarrone acredita no poder terapêutico de transformar em riso a miséria humana.
Nos primeiros dois meses de atividade, ele calcula ter conseguido "construir vínculos" com 30 pessoas. Um deles era HIV positivo. Depois de saber que tinha a doença, decidiu "morrer na Cracolândia". Fanfarrone disse que hoje pessoas com aids podem sobreviver por anos, desde que medicadas. Ao saber disso, o jovem começou a se tratar. Mas permanece na Cracolândia.
Fanfarrone evita arriscar um palpite sobre quanto tempo a região ainda vai conviver com a cidade. Mas arrisca uma definição sobre o local: "a Cracolândia é a sombra da cidade de São Paulo".
Artigo retirado de Estadão. Para saber mais clique aqui.

10/09/2013

TEM PALHAÇO NO PROAD

TEM PALHAÇO NO PROAD
Flávio Falcone


Há 7 meses, colaboro com o acolhimento do PROAD atendendo adultos que enfrentam a problemática da dependência química. Minha ferramenta de trabalho é a arte do riso. Utilizo técnicas de treinamento de palhaço para oferecer aos pacientes uma possibilidade de se renovar o olhar para suas vidas.

O treinamento do palhaço passa pelo entendimento de que tudo é risível e  revela o estado de graça de todas as coisas. O palhaço expressa a perplexidade da criança diante do mundo. Um estado em que não há julgamento moral. Onde todos os tabus deixam de ser uma ameaça e se tornam inofensivos. A sensação provocada por uma gargalhada é a de plenitude, de gozo, de satisfação. É a conciliação entre os opostos da consciência (bem/mal, certo/errado, masculino/feminino).
Para a psicologia analítica, o riso mobiliza o contato da consciência com a função transcendente, pois no riso o homem se funde ao seu estado de origem “divina” e primitiva. Muitos comparam esse estado com a sensação do útero materno. É o retorno ao mundo do sagrado, do numinoso, cuja plenitude se confunde com a do estado primordial. É o avesso do cotidiano, a ruptura com as atividades sociais, o esquecimento do profano, um contato revigorante com o mundo dos deuses e dos demônios que controlam a vida.
Para o autor Edward Edinger, a experiência do numinoso é de extrema importância em processos de transformação psíquica. O contato com o estado primitivo é o contato com o estado de pura potencialidade, de onde pode uma nova forma ou atualidade surgir. Segundo Edinger, “os aspectos fixos e desenvolvidos da personalidade não permitem mudanças. São sólidos, estabelecidos e certos de sua correção. Somente a condição original – indefinida, fresca e vital, mas vulnerável e insegura -, simbolizada pela criança, esta aberta ao desenvolvimento e, portanto, viva.”(1)       

Para muitas pessoas, o uso de drogas esta associado a uma busca pela experiência da transcendência, pelo estado de prazer semelhante ao da fusão com o útero materno. O acolhimento de palhaço no PROAD busca atender a essa necessidade criativamente, oferecendo a experiência do retorno à infância através de exercícios cômicos. A arte do palhaço favorece a expressão de conteúdos inconscientes e faz com que o riso vença o medo de lidar com os aspectos sombrios da personalidade. Segundo Frederico Fellini, “no circo, através do palhaço, a criança pode imaginar que faz tudo o que está proibido, se vestir de mulher, armar surpresas, gritar, dizer em voz alta tudo o que pensa. No circo ninguém te repreende.  Pelo contrário, te aplaudem.”(2)
A psiquiatra Carmen Santana dá seu depoimento sobre o palhaço no seguinte texto: “no palhaço encontro, encarnada e restaurada, uma dimensão positiva e criadora do riso, que faz renascer um mundo múltiplo e fervilhante. É ele o risonho porteiro do circo que, com seu humor, nos convida para o espetáculo da vida, espetáculo de um mundo convertido em picadeiro. (...) Á medida que o palhaço incorpora, pela ação, pantomima e palavra, a coexistência de realidades opostas da vida, jogando, tateando, brincando, com estas oposições sem tentar reconcilia-las, ele nos conecta com a mobilidade do mundo mais que com sua estrutura, com o acontecer ininterrupto, mais que com a sucessão de instantes fotografados e encerrados nos limites de uma moldura. Deslizando com o palhaço em seu viver, temos estado a descobrir no mundo a sua vibração, sua graça, sua palhacice. (...) A presença do palhaço é transformadora, pois reinventa, a todo instante, nosso olhar para a vida. Por ver o mundo pelo grotesco é inofensivo e alegre, nele o medo é vencido pelo riso.”(3)



Referências:

(1)                                 Edinger, Edward F. (2006). Anatomia da Psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia”. São Paulo, Ed. Cultrix, pág. 31
(2)                                 Fellini, F. (2004). Fazer um Filme. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, pág.185.
(3)                                 Sampaio, C.P. (1993). Entre Palhaços e Capitães. Junguiana Rev. Brasileira de Psicologia Analítica, no. 10, pág. 38 – 45.


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