Especialistas da ONU e OMS criticam internação
compulsória de viciados em crack
Daniela Fernandes
De Paris para a BBC Brasil
Atualizado em 6 de fevereiro, 2013 - 05:56 (Brasília)
07:56 GMT ( Ver site BBC )
O governo paulista
diz que suas propostas para o tratamento dos usuários de crack estão de acordo
com as premissas da ONU e da OMS e afirma que, até hoje, nenhum paciente foi
internado por ordem judicial e menos de dez foram internados involuntariamente
(a pedido da família, mas sem ordem da Justiça).
Para o médico
italiano Gilberto Gerra, chefe do departamento de prevenção às drogas e saúde
do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC, na sigla em
inglês), é necessário oferecer aos viciados "serviços atrativos e uma
assistência social sólida".
"Uma boa cura
de desintoxicação envolve tratamento de saúde, inclusive psiquiátrico para
diagnosticar as causas do vício, pessoas especializadas e sorridentes para
lidar com os dependentes e incentivos como alimentação, moradia e ajuda para
arrumar um emprego", diz Gerra.
"O Brasil
precisa investir recursos para oferecer serviços que funcionem e ofereçam
acompanhamento médico completo, proteção social, comida e trabalho para os
dependentes", afirma.
De acordo com ele,
o Brasil tem bons profissionais no campo do tratamento das drogas, mas faltam
especialistas, e a rede médica nessa área é insuficiente.
Segundo Gerra, a
internação compulsória deve ocorrer pelo prazo máximo de algumas semanas e só
se justifica quando o dependente apresenta comportamento perigoso para a
sociedade ou para si próprio.
Acompanhamento
O médico defende o
acompanhamento contínuo mesmo após a fase de desintoxicação, como exames de
urina para detectar drogas nas pessoas que receberam auxílio para arrumar um
emprego ou a presença de assistentes na hora das compras no supermercado para
fiscalizar se o cupom de alimentação recebido é realmente utilizado com essa
finalidade.
Autor do documento
"Da coerção à coesão: tratando a dependência às drogas por meio de
cuidados à saúde e não da punição", do UNODC, Gerra diz que o tratamento
do vício do crack não é feito com remédios, e sim com acompanhamento
psicológico e psiquiátrico.
Ele afirma ainda
que os países democráticos devem "estar atentos" ao sistema de
internação compulsória para não transformar isso em uma "rede" de
tratamento para lidar com o problema.
Para o médico
australiano Nicolas Campion Clark, da direção do abuso de substâncias da
Organização Mundial da Saúde (OMS), a internação compulsória traz o risco de
"criar uma barreira com o dependente" e afetar sua confiança,
dificultando, portanto, o tratamento.
Clark afirma que
muitos países possuem legislações que autorizam a internação compulsória de
dependentes, mas "isso é usado raramente e não funciona realmente na
prática".
"É melhor
encorajar o sistema voluntário de tratamento. É difícil forçar alguém a se
tratar. Se você oferecer uma chance para as pessoas se recuperarem e terem
comida, alguns vão agradecer, outros vão querer voltar para onde estavam",
afirma.
Problemas múltiplos
O especialista da
OMS também afirma que o vício do crack envolve problemas múltiplos
(psicológicos e sociais) que devem ser tratados com ações em várias áreas além
da médica, como moradia, alimentação, assistência geral e programas de emprego.
Ele afirma que há
exemplos de programas de tratamento voluntário de dependentes em países como os
Estados Unidos e a Austrália que "ajudam as pessoas a reconstruir suas
vidas e não são apenas soluções temporárias".
O médico cita
também o programa brasileiro que permite às grávidas viciadas em crack obter
tijolos e materiais para construir casas em troca de tratamento.
"Isso dá
instrumentos para que elas façam algo diferente em suas vidas", afirma.
A OMS já criticou o
sistema de internação compulsória de dependentes realizado em países asiáticos.
"Eles detém pessoas viciadas e estão tratando casos de saúde com a
prisão", diz Clark.
A organização
publicou um documento no ano passado solicitando aos países para fechar os
centros de tratamento compulsório de drogas.
Segundo Clark, pelo
menos 90% dos dependentes químicos no mundo não recebem tratamento.
São Paulo
No último dia 21, o
governo de São Paulo iniciou em parceria com a Justiça um plantão jurídico em
uma clínica especializada no tratamento de dependentes químicos no centro da
capital.
A medida gerou
polêmica e atraiu críticas de ativistas de direitos humanos, contrários à
internação forçada e que temiam o uso da polícia para levar viciados para
tratamento.
As autoridades de
São Paulo afirmam que a participação da polícia na ação nunca esteve nos planos
do governo e que a internação compulsória seria empregada apenas em casos
extremos.
Mas a exposição do
assunto na mídia aumentou o número de atendimentos voluntários na clínica.
"Passamos a atender até 120 pessoas em um dia. Esse era o número de
pessoas que recebíamos em uma semana", disse Rosângela Elias, coordenadora
de saúde mental, álcool e drogas da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo.
Segundo ela, o
Estado mantém ainda cerca de 300 vagas em moradias assistidas. Nelas, o viciado
em crack em processo de desintoxicação recebe por até seis meses um local para
morar, alimentos e incentivos para voltar ao mercado de trabalho.
Nesse período,
também é incentivado a frequentar clínicas públicas especializadas onde recebe
atendimento clínico e psicológico. De acordo com Elias, há uma mobilização de
secretarias estaduais e municipais para ajudar o dependente químico em
recuperação a se reinserir na sociedade.